GE Cosmovisão Cristã
9 min readApr 9, 2021

QUANDO ALGO DE ERRADO NÃO ESTÁ CERTO[1]

Falar de pecado, via de regra, é entrar em um terreno espinhoso. Ainda assim, é tão necessário quanto falar sobre redenção. Em O Peregrino, obra na língua inglesa mais lida após a Bíblia, John Bunyan conta a história de Cristão, um homem que decide fugir da Cidade da Destruição para a Cidade Celestial após encontrar um livro que prenunciava a Ira Futura: “Minha querida esposa — disse ele –, e vocês, filhos da minha carne, eu, eu caro amigo, estou atormentado por um fardo que me preocupa, pois sei que nossa cidade será destruída pelo fogo dos Céus. Uma queda terrível trará a ruína a mim, a ti minha esposa, e a vós, meus doces filhos, exceto (o que ainda não vejo) se encontrarmos alguma maneira de escapar e nos salvarmos.”[2] Se retornarmos ao texto de Atos 17, percebemos que a notícia do pecado é fundamental para a comunicação do evangelho: “Ora, não levou Deus em conta os tempos da ignorância; agora, porém, notifica aos homens que todos, em toda parte, se arrependam; porquanto estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça” (Atos 17:). Se observarmos a pregação de Pedro em Atos 2, através da qual três mil pessoas foram batizadas, identificamos também a clara comunicação da pecaminosidade dos destinatários da pregação: “Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus, que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo” (Atos 2:36).

Ainda assim, ao tocarmos nesse assunto corremos o risco de, semelhantemente ao caso da criação, perdermos o foco e incorrermos em no legalismo farisaico tão condenado por Cristo. Por outro lado, evitar o assunto não nos isenta de erros, partindo para o lado libertino da força, tomando a graça como passe-livre para pecar sem peso na consciência. É necessário, portanto, buscar o equilíbrio bíblico neste ponto a fim de que seja possível compreender quais são os verdadeiros efeitos do pecado e como devemos viver conscientes disso sem que nos enveredemos para o legalismo ou para a libertinagem.

A Abrangência da Queda

Nas palavras de Louis Berkhof: pecado. “A Bíblia nos ensina que o pecado entrou no mundo como resultado da desobediência de Adão e Eva no paraíso. O primeiro pecado foi instigado por Satanás, o qual, em forma de serpente, semeou no coração humano a semente da desconfiança e incredulidade.”[3] Até aí, não vemos nada que nunca tenhamos ouvido na EBD desde criança. Talvez você já tenha até mesmo pintado ilustrações de Adão e Eva no Jardim comendo de um fruto pintado de uma cor aleatória para não parecer uma maçã — talvez você até ache que foi uma maçã! Mas quais são as reais implicações desse fato? Ainda segundo Berkhof, “Os elementos desta rebelião são os seguintes: quanto à mente, se revela como orgulho e incredulidade; quanto à vontade, houve a intenção de ser como Deus; e quanto aos afetos, houve um desejo sacrílego de comer um fruto proibido. Como resultado de tudo isso, o homem perdeu a imagem de Deus no sentido restrito, e se tornou culpado e totalmente depravado, caindo, por sua própria iniciativa, sob o poder da morte.”[4]

Não é incomum que seja cometido o erro de pensar que os efeitos do pecado se restringiram à expulsão de Adão e Eva do paraíso, o rastejo da cobra e a possibilidade da morte, imaginando que os seres humanos ainda nasçam bons, podendo inclusive preservar essa bondade original caso se comportem bem, mas, por um infortúnio, acabam sendo corrompidos pela sociedade. A sutileza do erro está no fato de ele não necessariamente se apresentar nesses termos, mas em ideias como “crianças nascem puras” ou que alguns povos isolados são “inocentes” por não estarem em contato com a sociedade pecaminosa. Isso não poderia estar mais distante dos padrões bíblicos, que afirmam categoricamente que “Não há um justo, nenhum sequer” (Romanos 3:10) porque “A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça; porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou” (Romanos 1:18, 19). Nem mesmo as crianças escapam da corrupção do pecado, como indica o salmista: “Eu nasci na iniquidade, e em pecado me concebeu a minha mãe” (Salmo 51:5).

Com a queda, a humanidade perdeu sua comunhão com Deus, mas não sua teorreferência, isto é, ela continua agindo em referência ao Deus Vivo, mas agora em rebelião, inversão e reversão. Todo homem tem a consciência de que há um Deus e que esse Deus requer algo da humanidade, como o apóstolo Paulo bem explicou aos Romanos: “Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis” (Romanos 1:20). Ainda assim, por conta da corrupção ocasionada pelo pecado, não é ao próprio Deus que o homem recorre a fim de satisfazer essa necessidade percebida, pelo contrário, “porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis” (Romanos 1:21–23). Nas palavras de Emilio Garofalo Neto: “Em nossa rebelião, buscamos suprir esta necessidade e reconhecimento de Deus com ídolos e religiosidade pervertida. Nossos corações são fábricas de ídolos, e com eles somos capazes de criar pseudossubstitutos de Deus, que, feitos em nossa imagem, refletem nossos anseios distorcidos, e adoramos a criatura em lugar do criador. Temos a necessidade de adorar, mas ao mesmo tempo queremos fugir do verdadeiro Deus.”[5]

É inevitável, portanto, que esse estado de pecaminosidade exerça influência sobre as produções cinematográficas. Mais uma vez, tomamos aquilo que seria naturalmente bom, afinal é o desenvolvimento da criação conforme estruturada pelo próprio Deus, e utilizamos de maneira apóstata, a fim de que sirva aos nossos próprios desígnios pecaminosos. Apropriamo-nos de uma forma de arte que não é má em si mesma — embora existam denominações que proíbem absolutamente a ida ao cinema — e a transformamos em um instrumento de impiedade, produzindo conteúdos que desonram a Deus, como obras que propagam cosmovisões pagãs, que exaltam comportamentos pecaminosos ou se prestam exclusivamente ao pecado, como é o caso da pornografia.

Isso não significa, entretanto, que tudo que é produzido por um ímpio é intrinsecamente ruim e deve ser descartado. Mediante àquilo que chamamos de graça comum, Deus refreia a maldade dos homens e permite que, apesar da impiedade, produzam coisas boas, como vemos claramente nos descendentes de Caim registrados em Gênesis 5 que, mesmo sendo de uma linhagem apóstata, foram responsáveis pela descoberta de áreas muito importantes, como a música. Além disso, vale ressaltar que mesmo as obras feitas por cristãos regenerados estão sujeitas à corrupção do pecado, uma vez que a santificação é um processo gradual e a não influência do pecado só será possível nos novos céus e nova terra. Até lá, devemos ter nossos olhos atentos para, como aconselhou o apóstolo Paulo, examinar todas as coisas e reter o que é bom (1 Tessalonicenses 5:21).

Um Distúrbio na Força

Existe, porém, um outro aspecto da queda que pode ser observado no cinema: sua presença dentro das narrativas. Assim como observamos com a criação, a queda também é parte integrante das histórias que assistimos no cinema independentemente da consciência do autor a respeito disso. Há sempre um problema a resolver, um “pecado original” que criou naquele universo fictício uma necessidade de redenção que, muito possivelmente, será aquilo que irá guiar toda a trama. Pense um pouco. Você provavelmente já assistiu um filme — mal-feito — em que simplesmente parecia não haver uma história, mas apenas cenas aleatórias passando na tela, justamente pela ausência de um problema a ser resolvido, de um objetivo a ser alcançado. Assim como na realidade existe um problema (o pecado) que requer uma redenção (o sacrifício expiatório de Cristo), as boas tramas cinematográficas compartilham da mesma estrutura.

Se tomarmos (500) Dias Com Ela — sim, de novo — podemos identificar claramente qual o problema e até mesmo qual a redenção esperada porque o próprio narrador nos fala no início: “O rapaz, Tom Hansen, de Margate, Nova Jersey, cresceu acreditando que nunca seria verdadeiramente feliz até o dia em que ele encontrasse ‘a escolhida’. Essa crença veio de uma precoce exposição a pop britânico triste e uma interpretação totalmente equivocada do filme ‘A Primeira Noite de Um Homem’.” A história é fiel ao que apresenta: um rapaz que vive em busca da tal “escolhida” e acaba por se frustrar em um relacionamento por conta disso. Em Star Wars IV, também somos apresentados cedo ao problema: a princesa Leia foi sequestrada e estava em cativeiro na Estrela da Morte. A partir daí, Luke, que encontra o pedido de socorro, e Obi-Wan partem em direção à arma do Império Galáctico para encontrá-la.

Muito embora possa se apresentar na forma de problemas que de fato são problemas, é possível que isso não ocorra e sejamos introduzidos a visões de mundo que invertem essa perspectiva, como é o caso do filme Pleasantville. Em vias gerais, o filme trata de um casal de irmãos que é transportado para a cidade em que acontece um sitcom dos anos 50 homônimo ao filme. Nessa cidade não há maldade, crimes, ou sofrimento — um verdadeiro paraíso — mas também não há sexo. A partir daí, Jennifer, interpretada por Reese Whiterspoon, se torna a responsável por introduzir aquele mundo [literalmente] preto-e-branco ao universo colorido do sexo. Embora, como cristãos, possamos pensar que o momento da “queda” nesse filme é justamente a “revolução sexual” de Jennifer, o problema a ser resolvido, na perspectiva do autor, é justamente o preto-e-branco “careta” da vida paradisíaca (que, por sua vez, também é retratada de maneira equivocada se comparada ao paraíso verdadeiro). O que para nós seria o “pecado original” se torna a redenção em Pleasantville. Uma total inversão. Como bem escreveu Mike Cosper: “A mensagem é clara: embora a vida em cores não seja indolor, é melhor do que a vida em preto-e-branco, que é indolor mas sem paixão A imperfeição da vida colorida é um preço que vale a pena pagar em contraste com a ingênua e sombria existência da inocência alegre e de olhos arregalados.”[6]

O Ponto de Contato

É justamente essa visão acerca de qual é o problema fundamental da humanidade, muitas vezes comunicados pelos filmes, que nos permite encontrar pontos de contato com aqueles que desejamos alcançar com a verdade do evangelho. Podemos encontrar no cinema um aliado para entendermos o que aflige nossos contemporâneos. Por que, por exemplo, tantas pessoas se identificam com Tom Hansen, de (500) Dias Com Ela, ou com seu par não-tão-romântico Summer Finn? Quais as compreensões dessas pessoas acerca do amor e do propósito dos relacionamentos? Por que tantas pessoas se identificam com determinadas histórias? Quais são os pressupostos que esses filmes carregam?

Ao identificar o paradigma da queda nos filmes que assistimos, conseguimos compreender, de alguma maneira, qual é a parte que falta, qual é o “pecado original” que precisa ser redimido. A partir daí, podemos olhar para a pessoa ao nosso lado e explicar, quem sabe, como esse problema é decorrente de algo bem maior — e pior — como é o pecado, ou como, talvez, o problema que a pessoa enxerga na verdade não é um problema se olhado através da perspectiva correta.

Importa observar as palavras de Mike Cosper: “Inverter a queda desta forma é como uma criança reagindo a perder um brinquedo como resultado de mau comportamento. Ela diz: ‘Ah, eu não queria mesmo’. Fingir que o jardim era uma gaiola ou uma existência superficial pode oferecer alguns confortos consideráveis, mas não faz a lembrança do jardim ir embora.”[7]

[1] Texto-base para o encontro que ocorreu no dia 08 de abril de 2021. Para saber mais sobre os encontros, acesse: https://www.instagram.com/gecosmovisao/

[2] John Bunyan. O Peregrino.

[3] Louis Berkhof. Sumário de Doutrina Cristã.

[4] Ibid.

[5] Emilio Garofalo Neto. A busca humana por diversão sob a ótica bíblica.

[6] Mike Cosper. As Histórias Que Contamos.

[7] Ibid.

Carlos Roberto Parra é membro da Igreja Presbiteriana Metropolitana de São Paulo, graduando em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde também é pesquisador, e é estudante de teologia no Seminário Martin Bucer. É também fã de comédias românticas, entusiasta de música e inconformado torcedor são-paulino.

GE Cosmovisão Cristã

Grupo de Estudos de Cosmovisão Reformada da Universidade Presbiteriana Mackenzie.