GE Cosmovisão Cristã
9 min readMar 9, 2021

MODA E CINEMA

Estilista norte-americana Edith Head, indicada 35 vezes ao Oscar de melhor figurino, das quais ganhou 8.

INTRODUÇÃO

Antes de qualquer coisa, gostaria de explicar, resumidamente, porque sempre insisto em inserir o estudo do vestuário em pautas científicas, como uma tentativa de eliminar, de vez, o conceito de que não passa de uma discussão superficial. A semiótica, em poucas partes, carrega sua culpa na consolidação deste conceito, já que atribui à roupa a tarefa de representar um “eu” interior. Porém, não há razão para considerar o real interior e a falsidade externa. A moda, criatura sem valor e superficial, escrava da personalidade que dá a ela dignidade e requinte, já fez seu papel de revelar muitas verdades historiográficas. O seu estudo contribui para o atestamento das condições econômicas, até a organização social de uma sociedade. É um rico domínio da cultura material e, como matéria sobreposta aos seus aspectos funcionais, manifesta um testemunho privilegiado do homem e de sua história.

1. CONTEXTUALIZANDO

A Quebra da Bolsa de Valores de Nova York em 1929, afetou a economia mundial e resultou no desemprego em massa, levando milhões de pessoas à pobreza e ao desespero. Por sua vez, a Alta Costura parisiense, ainda no domínio da Indústria da Moda, apesar do crescente número de estilistas em Londres e Nova York, teve que reduzir preços e custos, já que dependia em grande parte das exportações aos Estados Unidos. Com isso, surge, na década de 1930, uma simplificação do vestuário, na qual são descartados os bordados, incluídos os tecidos sintéticos e introduzidas as roupas prontas para usar. Logo, o cenário de crise e de escassez existente na época contribuiu para o surgimento de uma cultura baseada no escapismo e de mercadorias que estabeleciam os mesmos efeitos sociais que os entorpecentes, como diz Walter Benjamin em seu livro “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”.

Tanto a moda quanto o cinema desenvolveram sistemas de produção correlacionados, muito lucrativos, que desviavam a mente dos seus espectadores para entretenimentos e sonhos. As roupas prontas para usar e as lojas de departamento possibilitaram o mimetismo e despertaram o desejo em milhares de mulheres em todo o mundo, e o cinema, que, segundo Edgar Morin em seu livro “As estrelas de Cinema”, foi o primeiro veículo de comunicação a reunir espectadores de todas as classes sociais, contribuiu ainda mais para atingir todas as camadas da população, resultando, assim, em uma fantasia sociocultural ainda mais efetiva. Ambos atingiram seus auges em 1930 e, depois, em 1950, e se mostravam extremamente dependentes um do outro.

Costureiros europeus desenhavam roupas para filmes de Hollywood, e quando a parceria corria bem, era economicamente recompensadora para os dois lados. A vestimenta auxiliava na narrativa cinematográfica e os filmes davam a conhecer os nomes dos criadores. Porém, as mudanças na moda poderiam arruinar um filme, já que demoravam até dois anos para serem lançados após o fim das filmagens, havendo o perigo dos figurinos ficarem fora de moda. Além disso, em um contexto em que a fotografia já havia substituído quase que completamente as ilustrações nas revistas de moda, dando aos leitores uma melhor visualização do caimento dos tecidos e da silhueta, a filmagem possibilitava uma visualização ainda melhor, comportando-se como uma vitrine e oportunizando as reproduções fiéis. A eficiência da parceria entre moda e cinema é observada na venda, pela rede de loja de departamento Macy´s, de meio milhões de cópias do vestido criado por Adrian para a personagem de Joan Crawford no filme “Letty Lynton” de 1932. (DE LA HAYE, 1988).

2. A VITRINE

A consolidação do capitalismo durante a passagem do século XIX para o século XX, estimula o consumo não só de produtos, mas de imagens. Começam a ser atribuídos novos sentidos às mercadorias, mesmo que o conjunto de associações anexadas não tivesse nenhuma ligação com a utilidade do objeto, com a finalidade de apenas mitificar os produtos. Por isso, surgem, nos anos 1920, as vitrines de vidro, com uma disposição teatralizada dos itens à venda, formando um verdadeiro cenário, que Maria Claudia Bonadio, no livro “Moda e Sociabilidade” comenta ter chocado intelectuais como Henry James e Edna Ferber, devido à eficaz tática comercial e de marketing propiciado por essas Vitrines-Espetáculo, que despertavam o desejo como nada antes visto.

Walter Benjamin descreve o ato de flânerie, sendo o passeio sem preocupações, no qual o sujeito com um olhar ocioso passeia pelas vitrines, que apresentam uma semelhança entre a organização de manequins com a disposição de atores e atrizes em um quadro de cinema. Portanto, de acordo com Benjamin, as vitrines e seus enquadramentos propõem uma venda simbólica e imagética, assim como os filmes vendem as imagens organizadas e projetadas pela tela, oferecendo-as aos olhares passantes. A partir disso, o cinema passa a ter grande influência no mercado de moda e na difusão de novas tendências.

Surgem, nas lojas de departamento, seções exclusivas para a moda cinematográfica, e os fabricantes obtinham desdobramentos comerciais lucrativos evidentes. A rede de lojas de departamento americana Sears, Roebuck and Company enviou, durante toda a década de 1930, cerca de sete mil catálogos bienalmente com estilos hollywoodianos. Além disso, muitas empresas foram fundadas com o único objetivo de produzir modas inspiradas nas estrelas e nos filmes, como “Miss Hollywood” e “Studio Styles”.

A função do figurino é auxiliar na narrativa cinematográfica, construindo a personagem a partir dos signos e dos simbolismos incutidos no vestuário. Dessa forma, são associados também à moda hollywoodiana, padrões de beleza e estilo disseminados pelos atores de sucesso e seus modos de vida glamourizados, muito bem capturados pelas filmagens. A câmera mostra o rosto feminino cada vez mais próximo, a juventude é cultuada e os estereótipos estão presentes em quase todos os enredos, como a mulher inocente, a mulher rebelde, o homem herói do amor e da aventura. Por isso, não apenas as roupas, mas o conjunto todo de atitude, acessórios e cosméticos eram vendidos aos espectadores.

3. CRIADORES

O cineasta da Paramount, Cecil B. De Mille, foi o primeiro a dar importância às virtudes do figurino, como diz David Chierichetti em seu livro “Edith”. O diretor contratou Clare West, que trabalhou com o diretor D. W. Griffith no filme “Intolerância”, de 1916, e, logo em seguida, a substituiu por Howard Greer, que, por sua vez, contratou Edith Head como sua auxiliar. Depois, nos anos 1940, Edith se tornou figurinista-chefe, e em 1966, quando a Paramount foi vendida, passou a trabalhar como designer-chefe da Universal Studios. Hollywood também usufruiu de várias experiências com estilistas renomados, algumas assertivas, como as criações de Schiaparelli para as atrizes Mal West e Zsa Gabor, e outras sem sucesso, como Chanel quando contratada para vestir Gloria Swanson no filme “Tonight or Never”, de 1931.

A criação de trajes para filmes não só exige compreensão a nível de informação de moda, mas também a nível de caracterização psicológica para a construção dos personagens. Por isso, tornou-se cada vez mais evidente que para a elaboração dos figurinos, eram requeridas habilidades diferentes, então, Hollywood começou a promover os seus próprios estilistas. Dentre eles, Adrian, Travis Banton e Walter Plunkett. De acordo com Rosane Muniz, “O conceito de figurino é bem diferente do conceito para moda, porém a moda funciona como um grande campo de referência”, ou seja, os designers se inspiram em trabalhos de figurinistas para as novas coleções, e os figurinistas, por conta disso, passam a ditar moda de alcance internacional.

A recessão que assolava os Estados Unidos e a Europa, não permitia que as mulheres conseguissem comprar roupas novas. Porém, era fácil copiar detalhes e acessórios de trajes de filmes para o consumo em massa e, por isso, podiam ainda imitar o estilo de cabelo e maquiagem das estrelas. O penteado curto de Garbo e a mecha na testa de Claudette Colbert, por exemplo, foram amplamente copiados e, quando Jean Harlow surgiu como loira platinada no filme “Hell´s Angels” de 1930, as vendas de peróxido dispararam (ARRUDA, 2008). Os cílios e unhas postiças, ambos desenvolvidos na década de 1930, também tiveram origem em Hollywood.

O bom resultado das criações dependia, também, das parcerias entre as marcas e os atores. As mudanças sociais e econômicas que ocorreram nos Estados Unidos após a Segunda Guerra mundial, resultaram no surgimento de novos padrões de feminilidade e de uma nova postura da mulher em relação ao consumo, então as marcas, diante deste cenário, encontraram na jovem Audrey Hepburn, uma nova representação dessa feminilidade, que começa a ser esboçada na década de 1950.

Desse modo, a atriz passa a ser uma importante fonte de marketing e patrocínio, e principalmente junto com a Givenchy, Hepburn discute novos parâmetros de beleza e estilo nos filmes que tornaram seus figurinos memoráveis, como “Cinderela em Paris”, de 1957, e “Sabrina”, de 1954.

4. NOVOS HERÓIS

Os signos presentes em uma fotografia são encarados como verdadeiros por aqueles que a visualizam, e apresentam grande caráter influenciador. Susan Sontag diz que “a realidade sempre foi interpretada por meio das informações fornecidas pela imagem”, e Vilém Flusser ressalta que “o caráter aparentemente não simbólico, objetivo, das imagens técnicas faz com que seu observador as olhe como se fossem janelas, e não imagens”. Isto significa que, quando os atores e as atrizes encarnam, nas telas de cinema, padrões de beleza, de elegância e luxo, tornam-se símbolos de autorrealização não apenas hipoteticamente, mas em vida real e privada. Fotografias em revistas, cartazes, programas de rádio, exibições luxuosas e o “happy end”, transformam os atores em novos deuses hollywoodianos, que observam de cima as atividades cotidianas dos pobres mortais.

Edgar Morin denomina essas estrelas do cinema como “olimpianos”. Para o autor, são heróis modelos de cultura e modo de vida, que substituem as antigas referências dos jovens, que eram, antes, os pais, os professores e os heróis nacionais. Astros, como Ferd Asteire e Cary Grant, passam a influenciar as atitudes dos espectadores, no jeito de fumar, nas poses, gestos e palavras. Assim como Marlene Dietrich e Vivien Leigh, que serviam como referência para milhares de meninas. Porém, todos esses atributos não passam de uma ficção, um engano.

Flusser afirma que “a aparente objetividade das imagens técnicas é ilusória, pois na realidade são tão simbólicas quanto são todas as imagens”. Por isso, todo esse esforço feito pela indústria do cinema para moldar as celebridades por meio do vestuário e das sacadas cinematográficas, não se sustenta e acaba, de vez em quando, resultando em episódios chocantes, como por exemplo, o suicídio de Marylin Monroe, em 1962. Para Elizabeth Wilson, “Hollywood foi, em tempos, a fábrica que transformava algumas mulheres — as estrelas — em obras de arte permanentes (não obstante tê-la destruído enquanto mulheres)”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como conclusão, destacam-se as estratégias correlacionadas das indústrias cinematográfica e da moda para atingir uma enorme gama de consumidores. Estratégia essa responsável por induzir estes usuários a uma compra imagética, de caráter muito mais efetivo. Impulsionam a venda de produtos para além das esferas dessas duas indústrias, carregados de signos e simbologias que não apresentam, necessariamente, ligação com a utilidade do objeto.

Estas simbologias criam uma atmosfera coberta de sonhos e desejos, institucionalizando Hollywood como agente social. A institucionalização da autorrealização e da busca incessante pela felicidade. Porém, a tática é, na verdade, muito mais engenhosa do que aparenta ser. Isso porque trata-se de um delicado assunto aos homens e, principalmente, aos jovens.

Não é por acaso a influência e o mimetismo em massa ocasionados por esse conjunto de signos. Uma das maiores buscas humanas é pela felicidade íntegra, com esperanças de que seja encontrada, ora na ciência, ora na loucura e até na estultícia. Essa busca, que ecoa de geração em geração, revela-se, incessante enquanto estivermos debaixo do sol, porque, com olhos distorcidos, continuamos atribuindo à libertação e ao triunfo uma realização humana e terrena. Dessa maneira, assim como não há desfecho para essa procura, não há declínio visível para a estratégia dessas duas indústrias.

REFERÊNCIAS

ARRUDA, Lílian, Baltar, Mariana. Entre tramas, rendas e fuxicos. O Figurino na Teledramaturgia da TV Globo Editora: Globo. Rio de Janeiro: 2008.

BENJAMIN, Walter. Passagens. BOLLE, Willi; MATOS, Olgária (Org.). Trad. Irene Aron; Cleonice Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo. Ed. Brasiliense, 1995.

BONADIO, Maria Claudia. Moda e Sociabilidade: mulheres e consumo na São Paulo dos anos 1920. São Paulo. Ed. Senac São Paulo, 2019.

CHIERICHETTI, David. edith head: the life and times of hollywood’s celebrated costume designer. Nova York. Harper Perennial, 2003.

DE LA HAYE, Amy. Fashion Sourcebook: A Visual Reference To Twentieth Century Fashion. Macdonald & Co Ltda, London, 1988.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. 9.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. v.1: Neurose.

SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia da Letras, 2004.

Gabriela Subtil é paulista, cursa o terceiro semestre de Design de Moda, aspirante à alfaiate e apaixonada pelo estudo da cultura material e imagética na história, nova na fé e à procura de sabedoria; ama filmes de máfia e faroeste, nasceu assistindo Star Wars. É inspirada pela música, do jazz ao rock and roll, e adora ler literatura romântica e livros de sociologia.

GE Cosmovisão Cristã

Grupo de Estudos de Cosmovisão Reformada da Universidade Presbiteriana Mackenzie.