GE Cosmovisão Cristã
10 min readMay 1, 2021

FELIZES PARA SEMPRE[1]

Cena final de Um Lugar Chamado Notting Hill (1999)

Quando era criança, eu amava jogar futebol no videogame. Muito embora eu passasse mais tempo editando o time e personalizando o uniforme, minha parte favorita era ver o time levantando o troféu no final do campeonato. Tanto era assim que muitas vezes eu simplesmente criava um campeonato personalizado de duas partidas apenas para chegar mais rápido à final e poder assistir à cerimônia de premiação. No fim das contas, todos temos esse mesmo desejo manifesto de alguma forma. Alguns de nós querem ver o trunfo do nosso time do coração em um campeonato esportivo (o que, como são-paulino, venho desconhecendo), outros esperam pelo dia em que receberão alguma titulação importante, alguns ainda esperam pela cerimônia de casamento que vai deixar qualquer casamento da realeza britânica em segundo plano. Há ainda quem espera o dia em que alguma mazela social será solucionada por vias política e enfim vamos viver felizes para sempre.

Há uma citação de C. S. Lewis já bem conhecida que diz que “Somos criaturas medíocres, brincando com bebida, sexo e ambição, quando a alegria infinita nos é oferecida, como uma criança ignorante que prefere fazer castelos na lama em meio à insalubridade por não imaginar o que significa o convite de passar um feriado na praia. Nos contentamos com muito pouco.”[2] De fato, essa é a nossa condição enquanto seres humanos caídos e distantes do Senhor: desprezamos a oferta de comunhão imperdível como o Criador de todo o universo em troca de coisas criadas cercadas por poeira de morte. Ainda assim, não conseguimos nos livrar do anseio por glória que foi gravado em nosso coração. Nenhum pódio de Copa do Mundo, nenhum prêmio Nobel, nenhum show de fogos de artifício, porém, pode se comparar à glória reservada para o dia da Consumação.

E aos que justificou, a estes também glorificou

Em Romanos 8, Paulo descreve o que veio a ser conhecido como Ordo Salutis, isto é, a ordem da salvação: “Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou.” (vv. 29, 30). Sabemos que somos justificados pela fé, mas uma simples olhada ao redor nos mostra que ainda não fomos glorificados. Isso dá origem à tensão escatológica resumida na frase “já e ainda não”. Já somos santos, porque fomos separados do mundo a fim de que sejamos conformes à imagem do Filho de Deus, e ainda não somos plenamente santos porque ainda lutamos contra a o pecado enquanto somos santificados por ação do Espírito Santo. Já somos salvos, porque Jesus levou sobre si a condenação que nos era cabida e satisfez a ira de Deus, nos concedendo livre acesso ao Pai, e ainda não somos plenamente salvos porque ainda lutamos com a presença do pecado no mundo. Na Consumação, porém, as coisas serão diferentes.

É possível separar didaticamente o processo da salvação em três partes: justificação, santificação e glorificação. Como já visto, a justificação é um ato único e definitivo, uma declaração forense de inocência diante de Deus — não porque sejamos realmente inocentes quanto aos nossos atos, mas porque aquele que é verdadeiramente inocente morreu em nosso lugar a fim de que fôssemos declarados justos. Ele levou sobre si nossas transgressões (cf. Is 53:4–5) e imputou a nós a sua própria justiça (cf. Is 53:11). Somos livres da culpa do pecado. A santificação, por outro lado, é um processo através do qual somos moldados pela obra do Espírito Santo conforme a imagem de Jesus Cristo, como Paulo escreveu aos Efésios: “Querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo; Até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a homem perfeito, à medida da estatura completa de Cristo” (Efésios 4:12,13). Somos livres do poder do pecado. A glorificação, por último, ainda há de ocorrer quando Cristo tiver todas as coisas sujeitadas debaixo de seus pés (cf. Hb 2:8). Nas palavras de Heber Campos Jr, “é o fim da era presente e o começo de uma eternidade sem os efeitos da Queda.”[3] Após o retorno glorioso do Nosso Senhor Jesus Cristo, habitaremos em Novos Céus e Nova Terra, não como almas penadas oriundas do imaginário grego que ainda parasita o cristianismo, mas materialmente, como pessoas integrais capazes de cumprir perfeitamente os mandatos divinos, uma vez que o pecado não mais nos aflige. Seremos livres da presença do pecado.

Uma nova era já foi inaugurada na plenitude dos tempos, sobretudo na ressurreição de Cristo. Enquanto João Batista pregava que o reino estava próximo, Jesus pregou que o reino era chegado. Nós já vivemos na nova dispensação, nos “últimos dias”, no reino inaugurado de Jesus Cristo. Ainda assim, aguardamos a consumação, quanto Cristo terá colocado todas as coisas debaixo de seus pés e voltará para julgar vivos e mortos, quando a criação deixará de gemer aguardando a redenção dos filhos dos homens e será, juntamente a nós, redimida. Gozaremos de comunhão imperdível com o Senhor, como está escrito: “E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles, e será o seu Deus. E Deus limpará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas.” (Apocalipse 21:3,4). Como escreveu Philip Ryken: “Quando o paraíso for reconquistado, não poderá jamais ser perdido; esta é uma das coisas que distinguem a consumação da criação: ela é indefectível”.[4]

Antes dos créditos subirem

Como não poderia ser diferente, nosso anseio pela glória eterna não deixa de estar presente nas histórias que contamos. Talvez os exemplos mais claros disso se encontrem nos contos de fadas que terminam com o tradicional “e foram felizes para sempre”. Após a bruxa má ter enfeitiçado a princesa e o príncipe encantado tê-la salvado com um beijo de amor verdadeiro, a história termina no glorioso casamento real. Alguns elementos são até mesmo escatológicos, como o príncipe que vem em um cavalo e o casamento que inaugura e era de felicidade eterna. Embora exemplos assim facilitem a visualização da Consumação nas narrativas, não podemos desconsiderar que os contos de fada não constituem parte considerável do que assistimos. Ainda assim, exemplos não faltam.

Se pensarmos em Star Wars IV, os momentos finais do filme são de pura glorificação. Os heróis que destruíram a Estrela da Morte, maior arma do Império Galáctico, são ovacionados em uma festa gigantesca e muito colorida onde recebem medalhas de honra ao mérito. A mesma fórmula é repetida em O Retorno de Jedi e A Ameaça Fantasma. Essa repetição, inclusive, é bem característica dos filmes de “Sessão da Tarde”, que costumam terminar com algum grande discurso ou uma grande vitória ao som de uma música triunfante e, obviamente, na presença de uma bandeira dos Estados Unidos balançando ao vento. Comédias Românticas também costumam ter um final semelhante, geralmente com o casamento dos protagonistas ou a resolução de seus problemas e o subir dos créditos indicando, ainda que não explicitamente, que viveram felizes para sempre.

Existem, porém, versões mais sutis desse momento, como em Gladiador [spoiler alert], quando Maximus, após derrotar cômodo, morre lentamente enquanto se alternam as visões do Coliseu onde Maximus aos poucos cai ao chão e o pós-vida, onde o gladiador finalmente se encontra com sua família, o que desejava desde o princípio. Por mais que não tenha sido uma grande marcha como a dos grandes generais romanos ao voltarem de uma campanha vitoriosa, aquele foi o momento da consumação do arco redentivo de Maximus. Tudo o que ele buscava desde o início do filme era “pendurar sua espada” e voltar para os braços de sua família e, após quase ser executado, ter fugido, visto sua família morta, sido vendido como um escravo para exibições de lutas e matado o Imperador diante de um Coliseu lotado, ele finalmente consegue abraçá-los.

Ainda assim, você pode estar se lembrando de um filme que assistiu que não teve um final assim. Talvez o final tenha sido trágico, cíclico ou até mesmo tenha ficado em aberto. Como se pode dizer que a Consumação está presente também em histórias assim? Para isso, é preciso lembrar do que temos reafirmado em todo capítulo: muito embora o homem tenha se rebelado, ele não pode apagar completamente a imagem de Deus segundo a qual foi criada. Sua rebelião não é abstrata, mas direcionada contra o Senhor. O homem perdeu sua comunhão com Deus, mas não sua teorreferência. Mesmo o ateu mais radical não escapa de viver no ambiente de Deus e fazer todas as coisas em referência a Ele. A grande diferença entre o ateu e o cristão é que, enquanto este faz todas as coisas para a glória de Deus, obedecendo a lei instituída pelo Senhor quando criou o mundo (o que é uma teorreferência positiva), aquele faz todas as coisas em rebelião contra Deus, apontando seus punhos cerrados contra o Criador e vivendo de maneira contrária ao que foi prescrito. Acontece, porém, que mesmo quando o homem se rebela, ele precisa tomar Deus como ponto de referência.

Dessa maneira, a negação da consumação pode ser equiparada a uma teorreferência negativa. Quando olhamos, por exemplo, para La La Land ou (500) Dias Com Ela, encontramos a história de casais que passam toda a trama tentando dar certo, mas acabam se separando. Nas cenas finais de ambos os filmes, o casal se reencontra, o espectador é levado a acreditar que há uma última esperança de que eles fiquem juntos, mas têm sua expectativa frustrada com a separação definitiva. Ou seja, mesmo a negação de uma Consumação gloriosa, como de praxe, trabalha com a expectativa dela. É como tentar escrever um texto completamente incompreensível e livre de qualquer padrão. Para fazê-lo, você precisa assumir a existência dos padrões corretos e criar um padrão que os negue. Schaeffer, em O Deus que Intervém, cita o exemplo de John Cage que fazia apresentações “musicais” subversivas, entre elas a de ficar sentado em frente ao piano por alguns minutos em completo silêncio. Mesmo a total abstração de Cage só encontra sentido em referência ao padrão que a música carrega consigo.

Apresentando a visão beatífica

Sabemos, portanto, que a expectativa de glória é algo de que nenhum de nós escapa. Assim como o homem não regenerado busca constantemente por algo ou alguém que o possa redimir, busca também por uma glorificação final, pelo êxtase inefável de inscrever seu nome no rol da história ou de, enfim, realizar aquele sonho nutrido desde a tenra infância. Sem Deus, construímos nossos montinhos de lama ignorando que nos é oferecido muito mais do que castelos de areia na praia. Como cristãos, vivemos na expectativa do retorno glorioso do Nosso Senhor, oramos “Maranata!” pedindo ao Pai que venha depressa o dia em que, como bem cantam os Vencedores por Cristo, “se tornará verdade tudo aquilo que sonhei, tristezas eu não mais terei e cada lágrima no meu olhar ele enxugará.” Diante de tamanha esperança, devemos não apenas lamentar por aqueles que se encontram na primeira situação, mas, como um mendigo que corre aos outros para dizer onde há comida, anunciá-los as boas novas de que Cristo em nós é a esperança da glória (cf Cl 1:27).

Em meio aos muitos holofotes e às falsas promessas de glória, existe uma visão santificadora — a visio beatifica ­– que nos transforma em um instante e há ainda de ser revelada, uma visão tão gloriosa que escapa à imaginação, algo que nossos olhos nunca sonharam contemplar, muito embora anseiem constantemente por ela. Nas palavras de Tony Reinke: “Plenamente manifestado diante dos nossos olhos, o Senhor Jesus completará nossa plena humanidade e arrancará de nós tudo o que for feio, defeituoso e caído. Essa visão de Cristo encherá nossa alma de alegria, felicidade eterna e prazeres sem fim.”[5]

Por fim, conto uma história recente. Estava eu no Beto Carrero durante as últimas férias. No primeiro dia no parque aconteceu algo bastante desagradável: caiu um temporal e o lugar inteiro ficou sem energia. Poupando detalhes sobre o fato de eu ter ficado preso em um trenzinho subterrâneo, o que aconteceu em seguida foi a coisa mais óbvia: todos correram para a praça de alimentação, o maior lugar coberto do parque.

Confesso que a visão ao chegar lá se assemelhava a de algum filme de desastre. Várias pessoas sentadas no chão, molhadas, com cara de frustradas, esperando alguma solução aparecer. Todos no escuro. Aquilo que era pra ser um dia de diversão se tornou mais uma dor de cabeça. “E agora?”, nos perguntávamos, “perdemos o dia? O parque vai reembolsar?”. As filas já não faziam sentido e nem mesmo o espetáculo que encerra as atividades do parque chegou a acontecer.

Em algum momento no meio de toda essa confusão, aconteceu uma cena bastante comum e que, com certeza, você já presenciou. No meio daquele escuro tristonho da praça de alimentação, brilham, de repente, as luzes do carrossel. Instantaneamente, sem qualquer combinado, todos se viraram para aquele espetáculo radiante e gritaram em comemoração. Luz! O povo que andava nas trevas viu uma grande luz.

Coisas tão simples acabam por nos lembrar daquilo que nos é inescapável: somos seres religiosos. Estamos constantemente em busca de espetáculos que capturem nossa atenção e preencham nossos olhos por completo. Como é bom ser cristão, pois regularmente recebemos o sacramento que é símbolo do maior espetáculo da terra. Que é símbolo do Filho de Deus crucificado entre a zombaria dos homens, ao mesmo tempo que é entronizado entre o louvor dos anjos. Que é símbolo do banquete que nos aguarda nas bodas do Cordeiro quando, pela última vez, o povo que anda em trevas verá uma grande luz. Luz que não se apagará e fará que o próprio sol se torne inútil. Enquanto aguardamos na escura praça de alimentação que é o mundo, nos resta dizer “Maranata! Vem, Senhor Jesus.”

[1] Texto-base para o encontro que ocorreu no dia 22 de abril de 2021. Para saber mais sobre os encontros, acesse: https://www.instagram.com/gecosmovisao/

[2] C. S. Lewis. O Peso da Glória.

[3] Heber Campos Jr. Amando a Deus no Mundo.

[4] Philip Ryken. Cosmovisão Cristã.

[5] Tony Reinke. A Guerra dos Espetáculos.

Carlos Roberto Parra é membro da Igreja Presbiteriana Metropolitana de São Paulo, graduando em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde também é pesquisador, e é estudante de teologia no Seminário Martin Bucer. É também fã de comédias românticas, entusiasta de música e inconformado torcedor são-paulino.

GE Cosmovisão Cristã

Grupo de Estudos de Cosmovisão Reformada da Universidade Presbiteriana Mackenzie.