GE Cosmovisão Cristã
12 min readMay 1, 2021

COSMOVISÃO, MÚSICAS DE AMOR E FILMES ÁGUA COM AÇÚCAR[1]

O rapaz, Tom Hansen, de Margate, Nova Jersey, cresceu acreditando que nunca seria verdadeiramente feliz até o dia em que ele encontrasse “a escolhida”. Essa crença veio de uma precoce exposição a pop britânico triste e uma interpretação totalmente equivocada do filme “A Primeira Noite de Um Homem”.

Quem tem uma maior familiaridade com o mundo encantado das comédias românticas muito provavelmente reconhece o trecho que escolhi para abrir este texto, mas, caso você ainda esteja no grupo daqueles que têm esperança e não conheça o que acabou de ler, saiba que é uma das primeiras falas do narrador de (500) Dias Com Ela, mas também poderia ser um breve relato da minha vida por um bom tempo. Sendo assim, fica feito o disclaimer de que este texto, além de informativo e, talvez, pastoral, também é um desabafo de alguém que sofreu na mão do romantismo por muito tempo. Enfim, quero falar aqui sobre como músicas de amor e comédias românticas moldam cosmovisões.

Lembro-me da primeira aula de Introdução à Cosmovisão que assisti com Jonas Madureira. Meu professor era outro, mas, à convite de um amigo, invadi uma turma de engenharia e assisti algumas aulas por lá. Uma das primeiras coisas a serem ditas foi que a cosmovisão é formada, em parte, pelas experiências pessoais de cada indivíduo — não no sentido de que a realidade ou a verdade sejam relativas, mas sim que as experiências que temos no decorrer de nossa existência influenciam na maneira que vemos a vida. As primeiras aplicações que vêm a mente, talvez por serem as mais claras, são geográficas, idiomáticas e culturais, afinal beira o óbvio a ideia de que alguém que nasce no Oriente Médio vai enxergar o mundo de uma forma totalmente diferente, e em um idioma totalmente diferente, do que um francês que compra baguete na feira e o carrega embaixo do braço. Existem, todavia, experiências muito mais sutis que acabam por influenciar o modo que enxergamos o mundo de maneira radical.

C. S. Lewis, em seu livro A Abolição do Homem, comenta que a introdução de ideias relativistas no ensino básico pode plantar sementes de uma cosmovisão relativista que, quanto o aluno crescer, sequer poderá saber de onde vieram. Isto é, uma exposição passiva e implícita à ideias de maneira reiterada faz com que estas se reifiquem na mente de um indivíduo e pareçam que, na verdade, sempre estiveram ali e as coisas sempre foram daquele jeito. É o velho exemplo dos macaquinhos que eram molhados se tentassem alcançar o cacho de bananas. A partir disso, podemos inferir que não são apenas os ambientes escolares ou religiosos que propiciam experiências que moldam a cosmovisão de uma pessoa, com efeito, sequer é necessário que se interaja com outra pessoa para que se configure uma ocasião em que a cosmovisão de alguém é formada. Analisemos, então, o caso de Tom Hansen, que, no fim das contas, pode ser o caso de qualquer um.

Tom Hansen cresceu acreditando que nunca seria verdadeiramente feliz até o dia em que ele encontrasse “a escolhida”. Tom Hansen não era alguém que não acreditava em felicidade. Tom Hansen não era um niilista. Tom Hansen acreditava e buscava a felicidade. Mas Tom Hansen acreditava em uma felicidade condicionada. A felicidade de Tom Hansen era condicionada a uma pessoa, uma pessoa desconhecida, mas uma pessoa que seria “a escolhida”. Para todos os efeitos, isso pode parecer algo que qualquer adolescente que insiste em comparar a si mesmo com Ted Mosby falaria, pode parecer apenas uma afirmação inocente de alguém que acredita em excesso no poder do amor, mas, na verdade, indica muito mais do que isso, indica uma expectativa redentiva na tal escolhida, uma expectativa redentiva em quem sequer se conhece.

Até aqui, talvez não haja nenhuma novidade, pode ser que alguém já tenha tuitado sobre a idolatria ao relacionamento e tratado de uma ideia semelhante a esta, até mesmo quem sequer sabe quem é Tom Hansen, Ted Mosby ou qualquer outra referência de jovem iludido. O problema é que, em geral, ataca-se a consequência, mas não se busca compreender as causas. Fala-se “não idolatre o relacionamento” ou “sinta-se satisfeito em Deus também enquanto solteiro”, mas raramente surge a pergunta: “por que você idolatra o relacionamento?” ou “por que você não se sente satisfeito em Deus também enquanto solteiro?”. Arriscaria dizer que, para muitos, a resposta a estas perguntas seria como a afirmação de um axioma: “eu preciso de um relacionamento porque todo mundo precisa de um relacionamento”, “eu não estou satisfeito porque é o relacionamento que satisfaz”. Alguns mais “bíblicos” afirmariam que “não é bom que o homem viva só”, não seria isso razão suficiente? São as palavras do próprio Deus!

Pelo bem da argumentação, partamos do reconhecimento de que existe uma idolatria do relacionamento, uma expectativa redentiva depositada no trocar das alianças ou até mesmo no trocar de carícias. Se você é um floquinho de neve capaz de dominar o próprio coração, por favor, não responda ao texto com “comigo não é assim”, Nosso Senhor Jesus Cristo já deu o recado há alguns anos: não são os sãos que precisam de médicos. Posto isto, prossigamos.

Não podemos, como cristãos, aceitar que haja algo em nosso coração que demanda toda nossa atenção e esforços, algo em que depositamos a esperança de nossa alegria, algo este que não seja Deus, e simplesmente acreditemos que ele está lá porque sim e, além de tudo, não é erro algum. É nosso objetivo aqui, portanto, investigar as raízes dessa idolatria. É claro que não há qualquer pretensão de esgotar as fontes desse pecado, mas denunciar algumas que tão de perto nos rodeiam e tão alegremente abraçamos: músicas de amor e filmes água com açúcar.

Em que pese todo o inferno de problemas que é o mercado pornográfico, existe outro efeito do consumo de pornografia que é extremamente claro e é até mesmo o mais reafirmado quando se prega contra o consumo dessa porcaria: a deturpação do sexo. É de conhecimento geral, acredito eu, que o sexo é uma criação de Deus, algo bom, um presente dado pelo Criador aos casados, uma maneira não só de serem abençoados com filhos, mas também com prazer. Deus fez o sexo e viu que era bom. O Diabo viu o sexo e o deturpou, não só o deturpou, mas fez o homem ver que a deturpação era “boa”. A pornografia toma o sexo, retira seu caráter divinal, puro, santo, e apresenta de forma profana, carnal, demoníaca. Aquele que consome tal absurdo é iludido com promessas de um falo de trinta centímetros e uma loira avantajada em sua cama, é iludido com promessas de um sexo fácil, caricato, mentiroso. Quando, portanto, um desvirtuado pela pornografia vai, enfim, experimentar o sexo na prática, o que encontra é totalmente diferente de suas expectativas idealizadas e fomentadas por uma indústria que se sustenta de seu vício e da exploração de homens e, principalmente, mulheres.

Guardadas as devidas proporções, não pude discordar de um tuíte que vi dizendo que comédias românticas são uma espécie de pornografia sentimental.

A primeira reação de qualquer pessoa sensata, acredito eu, costuma ser um belo “opa!”, afinal somos educados a compreender a realidade nefasta da pornografia e seus efeitos. Como poderia um filme água com açúcar, um clichê adolescente ou qualquer coisa assim ser comparado a um absurdo como filmes pornográficos? Talvez os filmes não sejam diretamente comparáveis, assistir uma comédia romântica não é necessariamente um pecado, como é assistir um pornô, mas os efeitos são, sim, diretamente associáveis. Enquanto, como vimos, a indústria pornográfica deturpa todo o caráter divino do sexo, as comédias românticas, na esmagadora maioria das vezes, deturpa a realidade, também divina, do amor.

Construamos um filme genérico: um rapaz e uma garota se conhecem em algum evento de interação social, se apaixonam à primeira vista (nos mais diferentões ainda há certo conflito superficial no início), aos poucos se aproximam e percebem que um é a alma gêmea do outro, vivem, por um tempo, o céu na terra: passeios no bosque, em museus, na rua vazia à noite, beijam-se como se não houvesse amanhã, isso quando não transam. De repente algo busca impedir esse grande amor. Às vezes uma viagem, outras vezes o trabalho, talvez alguém armando contra o casal, muitas vezes os pais (pois é, Shakespeare, não tá fácil pra você). Sempre há um terceiro contrário ao relacionamento, raramente o casal tem algum grande defeito que exija grandes sacrifícios ou reparos para manter o romance. A culpa é sempre de alguém. Por obra do destino, do poder do amor verdadeiro ou de qualquer outra porcaria que justifique um final Deus Ex Machina, o casal fica junto e vive feliz para sempre (pelo menos nessa nosso amigo inglês escapou).

Reconheceu algum filme com essas características? Não perca tempo listando, são muitos. São muitos os filmes que apresentam essa narrativa idealizada, repetida e até mesmo defasada do romance, mas que nunca abandona a estrutura de todo filme bonitinho que choramos assistindo. São filmes assim que apresentam uma realidade cor de rosa, onde os problemas, quando existem, são vencidos pelo poder do amor, quando não pela rebeldia. São filmes como esses que mostram casais desobedecendo seus pais, quebrando leis e fazendo absurdos para viver o tal amor, mas raramente demonstram o verdadeiro amor sacrificial. São filmes como esses que mostram jovens casais enfrentando Deus e o mundo para ficarem juntos, mas não enfrentando a si mesmos. São incontáveis os filmes que colocam essa paixão água com açúcar como o que move jovens idólatras a se rebelarem com a vida para poderem concretizar seus vis desejos adolescentes. São esses filmes que fazem com que rapazes como Tom Hansen, rapazes como eu, coloquem suas expectativas em um romance que nunca acontecerá.

Foi assim, acreditando nessa mentira, que Tom Hansen quebrou quase todos os seus pratos, não saiu da cama por dias e se tornou basicamente a caricatura dos velhos ranzinzas. Inspirado por uma má compreensão de “A Primeira Noite de Um Homem”, Tom projetou em Summer todas as suas expectativas de um amor de cinema, de conto de fadas, ou seja lá o que for. Tom acreditou que entregando sua vida, de corpo e alma para (e não por, que seja feita a distinção) Summer Finn, encontraria a verdadeira felicidade. Tom prostituiu seus princípios e entregou a si mesmo não pelo objeto de sua afeição, mas pela felicidade que acreditava ser decorrente deste. Emprestando a linguagem dos kantianos, Tom via Summer como um meio para alcançar a felicidade, não como o fim ao qual empenharia sua honra.

Não apenas os filmes, mas também a música tem sido um ponto muito problemático. Longe de mim cair na [defasada, cansativa e infrutífera] discussão a respeito de música de crente e música de descrente, ou, como minha vó divide, hino e música. O gospel pode ser tão idólatra quanto o não-gospel nesse sentido (imagine só dizer que Deus estava pensando em mim quando criou determinada pessoa, que prepotência). A grande questão é que músicas “de amor” são, também em sua esmagadora maioria, idólatras. São músicas que falam sobre o quanto o eu-lírico precisa, são músicas que falam sobre a total dependência em relação à pessoa, são músicas que declaram uma entrega total e irrefletida, um amor irracional, distorcido, idólatra. Costumo brincar com alguns amigos quando ouço determinadas músicas dizendo que são música gospel, porque as palavras, mutatis mutandi, poderiam ser facilmente dirigidas a Deus, justamente pelo viés idólatra, com expectativas redentivas, das letras.

Vou deixar o trecho de uma das músicas que mais escutei durante os últimos anos da minha adolescência (e que se enquadra em música pop triste britânica):

Me chame de mórbido, me chame de pálido, gastei seis anos atrás de você. Seis longos anos atrás de você. Me chame de mórbido, me chame de pálido. Gastei seis anos atrás de você, seis anos inteiros da minha vida atrás de você!

O nome da música? Metade de uma pessoa (Half a Person).

O que acontece, então, é um fenômeno em que as realidades que nos são apresentadas nesse tipo de conteúdo passam a ser apreendidas por nossa mente e pouco-a-pouco reificadas. Quanto mais nos expomos a esse tipo de conteúdo, mais normais e mais reais essas coisas nos parecem ser. Aos poucos, vamos, como no caso da pessoa que se tornou relativista porque as bases de sua educação, ainda que não explicitas, eram formadas por essa visão, acreditando que a realidade se baseia no mundo distorcido que os filmes românticos e as canções de amor nos apresentam. A nossa cosmovisão é moldada à uma ilusão. Uma mentira nos é apresentada tantas vezes que passamos a acreditar que a realidade, de alguma forma, há de se conformar àquilo. Sonhamos com amores de contos de fadas, de cinema, de qualquer coisa, menos com amores da vida real.

Essas produções são mentirosas porque desconsideram o pecado de, como poeira de morte, cobre toda a existência, essas produções são mentirosas porque desconsideram que debaixo do sol há apenas enfado e vaidade. O tal poder do amor, as paixões jovens ardentes e desenfreadas não são capazes de proporcionar verdadeira felicidade e muito menos redenção a qualquer um. Essas produções são mentirosas porque em seus mundos fictícios a depravação humana não é uma realidade, não há um mundo espiritual, um céu acima de nós ou um inferno abaixo. O mundo dessas produções é uma espécie de Planeta Imagine. A realidade dessas produções foi desenhada por John Lennon em seu grito por redenção expresso em Imagine. Essas produções são mentirosas porque fazem com que pessoas enxerguem o mundo do modo que este não é. O amor existe, mas não como nessas obras. O sacrifício é necessário, mas não como nessas obras. Há uma felicidade derradeira prometida, mas não como nessas obras.

Alguém um pouco mais esperto pode ter questionado: se os mundos fictícios são, de fato, tão fictícios, por que usar um exemplo fictício como o de Tom Hansen para ilustrar a história? Não seja por isso, eis o meu exemplo.

Carlos Parra, de São Paulo, capital, cresceu acreditando que nunca seria verdadeiramente feliz até o dia em que ele encontrasse “a escolhida”. Essa crença veio de uma precoce exposição a pop britânico triste e uma interpretação totalmente equivocada do filme “(500) Dias Com Ela”.

Fato é que, desde criança, sempre fui levado a acreditar que tudo que eu precisava era uma namoradinha. Cresci em um lar cristão, fui criado nos caminhos do Senhor e, por Sua graça, nunca me desviei, mas isso não impediu que meu coração continuasse sendo uma fábrica de ídolos. Com o passar da vida fui me deparando com aquelas comédias românticas do Adam Sandler, uns romancezinhos da Disney e, enfim, (500) Dias Com Ela. A cada dia eu acreditava mais que tudo que eu precisava estava em uma namorada.

Minha desculpa era até que bem elaborada. Argumentava eu que, assim como Adão era um homem completo em si e com um relacionamento próximo com Deus, afinal o via todos os dias na viração da tarde, mesmo assim sentiu falta de uma mulher sem que fosse pecado, assim eu estava. Não estava jogando minhas expectativas redentivas em uma garota, mas simplesmente desejando a companhia de uma. Uma grande tentativa de autoengano que, regada a diversas sessões do filme tão citado e algumas doses de “Exagerado”, do Cazuza, aumentava a cada momento,

Não vou entrar em detalhes, mas isso me rendeu uma “história de amor” terrível, com diversos eventos traumáticos e situações de auto humilhação pública, porque acreditava que era assim que a banda tocava, se nos filmes essas grandes palhaçadas funcionavam, deveriam funcionar comigo, um adolescente de 16 anos pesando 160 quilos, com zero reais na carteira e que não sabia se queria ser diretor de cinema ou astrofísico (cá estou eu cursando direito). Talvez algum dia a história transpasse o limite do meu círculo de amigos e pessoas que considero que possam dar boas risadas sem me achar estranho, mas a verdade é que qualquer pessoa em sã consciência pararia no segundo minuto da história. Recentemente levei quase duas horas para contar todo o acontecido para alguns amigos.

Foi há pouco tempo, mais precisamente quando comecei a ler mais a respeito e frequentar uma turma de discipulado sobre masculinidade que fui entender o tamanho do paspalho que eu estava sendo, todavia foi estudando cosmovisão que percebi as razões. Com isso, o que eu quero dizer não é que assistir comédias românticas ou ouvir músicas de amor seja pecado, acredito até que possa haver algo de graça comum nelas e uma ou outra obra bastante aproveitável, mas esse texto visa alertá-lo, como um amigo e como alguém que já se prejudicou muito com isso, a respeito dos perigos do consumo irrefletido dessas obras. É necessário sempre ter nossos “óculos de cristãos” vestidos. Não é porque os filmes nos proporcionam um momento de entretenimento que devemos deixar de refletir nas realidades que eles nos apresentam como verdadeiras.

Termino esse texto com um pedido: não se deixe enganar pela idealização dos filmes românticos, não se deixe enganar pela aparente beleza do amor cantado por aí. Existe uma história de amor muito melhor para nos espelharmos, que é a do Nosso Senhor Jesus Cristo conosco, Sua Santa Igreja.

[1] Texto-base para o encontro que ocorreu no dia 29 de abril de 2021. Para saber mais sobre os encontros, acesse: https://www.instagram.com/gecosmovisao/

Carlos Roberto Parra é membro da Igreja Presbiteriana Metropolitana de São Paulo, graduando em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde também é pesquisador, e é estudante de teologia no Seminário Martin Bucer. É também fã de comédias românticas, entusiasta de música e inconformado torcedor são-paulino.

GE Cosmovisão Cristã

Grupo de Estudos de Cosmovisão Reformada da Universidade Presbiteriana Mackenzie.