GE Cosmovisão Cristã
10 min readMay 10, 2021

COSMOVISÃO, ALIENS, ROBÔS, EXPLOSÕES E CARROS VELOZES[1]

Vin Diesel fazendo cara de mau em algum dos muitos filmes sob o título Velozes e Furiosos.

Uns confiam em carros, outros, em cavalos; nós, porém, nos gloriaremos em o nome do Senhor, nosso Deus. (Salmo 20:7)

Enquanto conversávamos, Carlos e eu (aprendi com o grande e saudoso Professor Girafales que devo dizer “Carlos e eu”, e não “eu e Carlos”), a respeito da abrangência do gênero cinematográfico Ação e Aventura, constatamos um pequeno problema. Para mim, vejamos, o gênero remete imediatamente ao Harrison Ford fazendo cosplay de Beto Carrero e fugindo, por um túnel cavernoso e antigo, de uma bola de pedra gigante em Indiana Jones; para você, talvez, o tema remeta ao Vin Diesel fazendo cara de mau, dirigindo um carrão e exibindo seus músculos enquanto as coisas — e pessoas — explodem com efeitos especiais que tornam tudo semelhante a um espetáculo de pirotecnia, como acontece nos milhares de filmes sob o título Velozes e Furiosos, que meu pai ama. Talvez não, talvez você considere que Velozes e Furiosos seja, quem sabe, um pouquinho de nada repetitivo e que Indiana Jones tenha envelhecido mal e, assim, prefira o Harrison Ford como o malandro (e quase brasileiro) Han Solo, em Star Wars ou, ainda, seja mais entretido pelo Liam Neeson ultrapassando os limites da meia idade em uma de suas buscas implacáveis.

“Aliens, robôs, mafiosos, criminosos, desastres, guerras, carros velozes…”. Filmes de ação e aventura nas palavras da Netflix.

O ponto aqui é que o gênero é amplo e, por isso mesmo, talvez, nenhuma dessas coisas lhe tenha tomado o pensamento. Talvez você tenha pensado em Procurando Nemo, Interestelar, Missão Impossível, algum filme com o Sylvester Stallone e o Arnold Schwarzenegger (nomezinho difícil de escrever), filmes de super-herói, de cowboy (aproveito para dizer que Clint Eastwood tem uma cara de mau mais intimidadora que o Vin Diesel) ou até filmes de fantasia, como o caso de Senhor dos Anéis, por exemplo. E, não estando nenhuma dessas possibilidades errada, isso só demonstra a amplitude de filmes que se enquadram nessa categoria.

As coisas tornam-se ainda mais complicadas se lembrarmos de algo com que, provavelmente, já estamos familiarizados por conta das discussões que tivemos acerca de cinema nas últimas semanas. Se levarmos em conta o que se diz sobre as histórias, o modo como elas são contadas, suas estruturas narrativas e as semelhanças entre elas, como buscaram explicar Joseph Campbell e Dan Harmon, dentre outros, podemos tornar ainda mais ampla a definição e dizer que todo filme é um filme de aventura, seja essa aventura literal, metafórica, psicológica, pessoal ou romântica etc.

No entanto, a fim de simplificar as coisas e facilitar nossa vida — complicada demais por si só — é necessário definir o gênero de modo que, ainda que abrangente, saibamos exatamente do que estamos falando. Em inglês (e, às vezes, em português), geralmente, existem duas categorias que abarcam esse tipo de filme: Action Film e Adventure Film. Dentro do primeiro tipo — os filmes de ação — estão filmes que geralmente envolvem violência, lutas, demonstrações de habilidades físicas, perseguições, explosões e essas coisas que envolvem adrenalina e muito movimento. Aqui que o Stallone, com sua boca torta, se encaixa com filmes como Rambo e Os Mercenários. Já no segundo tipo — os filmes de aventura — estão incluídos filmes que envolvem uma viagem, uma jornada. Geralmente os protagonistas deixam tudo para trás e seguem em uma aventura (daí o nome). Aqui se encaixa desde Central do Brasil (a respeito do qual será tratado especificamente em um outro texto) a Alice no País das Maravilhas, Tomb Raider e As Aventuras de Pi. Assim, podemos dizer que, obrigatoriamente, um filme de Ação e Aventura contém um desses elementos: ou uma jornada literal com desafios e talvez até inimigos ou violência e luta, que pode ser armada ou não. Ainda que todo filme, à luz da Jornada do Herói, seja uma aventura, nem todos são aventuras literais.

Ditas essas coisas, ficamos agora à mercê de identificar algum ponto de contato entre esse tipo de filme e nossa espiritualidade, nossa cosmovisão. Poderíamos dizer que a cara de mau do Vin Diesel e a boca torta do Stallone são expressões externas das consequências da queda em nossos corações e, assim, o texto se encerraria aqui. Mas, brincadeira à parte, dê uma pausa e pense. Ao conversarmos sobre as comédias românticas, olhamos para o fato de que, por vezes, elas retratam a idolatria que temos para com as relações afetivas e como, nelas, buscamos uma autorredenção, significado, razão de viver. Mas e os filmes de ação e aventura? O que os espetáculos de pirotecnia, os homens que vencem, sós, exércitos de inimigos e a violência diz sobre nós? Será que as aventuras e as jornadas em que as personagens conhecem um mundo desconhecido e, nesse processo, a si próprias, dizem algo a respeito do cosmos?

Para Joseph Campbell, toda aventura tem um ponto de partida banal. O lugar comum. O árido planeta Tatooine, em que vive Luke Skywalker, no começo do episódio IV; o Condado onde vivem os Hobbits e até mesmo a batalha que Máximo, protagonista de Gladiador, vence no começo do filme — ainda que a batalha seja algo extraordinário para nós, ela fazia parte do cotidiano da personagem, era seu trabalho e, portanto, era banal.

Nesse início banal das personagens, nós, telespectadores, temos o primeiro puxão que a verossimilhança (ou, em termos simples, a semelhança da obra com a realidade, que faz as histórias parecerem “reais” e nos cativarem) nos dá para dentro da história. Estamos, qual as personagens, em nossa vida comum, em nossos sofás assistindo ao filme, até que somos chamados a uma aventura junto das personagens em nossas telas. Há, em toda boa história, uma identificação inicial entre ela e aquele que a ouve (ou, no caso do cinema, a assiste). Os publicitários entenderam isso muito bem. Quando Gandalf chega no Condado e leva os pequenos Hobbits consigo, ele chega também em nossa casa e nos leva de nossos sofás. Isso, talvez, seja de onde a Jornada do Herói — proposta por Joseph Campbell como sendo a estrutura narrativa básica de todas as histórias que contamos e ouvimos — tira a sua precisão: ela toca em motivos básicos do coração humano, a busca pelo significado e pela transcendência, o desejo de fugir da banalidade. O telespectador, assim, por vezes descontente com sua vida ordinária, identifica-se facilmente com as protagonistas retratadas em sua tela e vê, nisso, a possibilidade de satisfazer seu anseio por algo que lhe permita ir além de seus próprios limites. Ser como Deus? Vencer o mundo? Talvez.

Por conta do modo como a realidade, nas telas, é remodelada e até subvertida, poderíamos dizer que todo filme de ação e aventura (e, quiçá, de qualquer outro gênero) é, em essência, uma obra de “fantasia”. Não são fantásticos necessariamente por haver magos com cajados e espadas, bruxos que soltam feitiços, dragões, vacas cor de rosa, não. São obras fantásticas porque, nelas, temos pessoas comuns e inesperadas lutando contra o mundo inteiro e, no final, prevalecendo. Ouso dizer que, nessa categoria, quanto mais semelhantes à nossa realidade, mais fantásticos são esses filmes, pelo fato de, neles, acontecer, em um mundo parecido com o nosso, coisas para as quais olhamos, fascinados e boquiabertos, dizendo: “Caraca! Que mentira!”. Lembro de ter sido essa a minha reação quando, pequeno, vi o Tom Cruise lutando contra o vilão, como um herói mitológico contemporâneo sobre a sua moto, em Missão Impossível 2 — eu também achava bizarras aquelas máscaras que eles usavam como disfarce.

Além de esses filmes modelarem a realidade, dando aos seus protagonistas (e ao telespectador que, com eles, identifica-se a priori) traços de um herói mitológico, grandes poderes e responsabilidades — tal qual a possibilidade de desafiar um dos maiores impérios da história sendo um mero escravo, como acontece em Gladiador — que dissolvem toda mediocridade da vida comum, eles também nos entretêm por meio da violência. Semelhantemente a como a plebe romana gritava, ansiando pela morte dos escravos jogados ao coliseu (destino de muitos dos nossos irmãos que, hoje, por meio de Cristo, fazem parte da Igreja Triunfante), eu às vezes anseio pelo momento em que o mocinho irá matar o vilão. Gladiador, já citado aqui mais de uma vez, fez-me pensar sobre isso tanto por conta de seu retrato dessa plebe sedenta de sangue inocente e ao me fazer torcer, ao longo de todo o filme, que Cômodo, personagem ao qual Joaquin Phoenix deu ares tão psicóticos quanto ao Coringa, fosse morto. O prazer que temos com a violência e a morte, junto ao desejo de ver exercida nossa própria justiça, revela que, em nós, ainda há daquilo que havia em Caim.

Esses filmes, assim, nos dão, por vezes, a toga e o martelo de juiz, junto a possibilidade de exercermos nossa própria justiça, escolhendo, e geralmente sem misericórdia alguma — a não ser nos casos em que gostamos deles –, o destino dos vilões. Mais do que querer que o personagem de Liam Neeson recupere sua filha em Busca Implacável, queremos que ele coloque tudo em chamas e não poupe nenhum dos sequestradores. Nessas narrativas, deixamos nosso papel real e assumimos o manto daquele que julga e executa a justiça com suas próprias mãos, ora salvando o mundo, outrora a si mesmo e aos seus. Na vida real, porém, somos nós os vilões que, se arrependidos, serão saciados de uma justiça que, mesmo que deveria cair sobre nós, foi posta na conta do verdadeiro herói, na Cruz do Calvário. Tudo isso me lembra a respeito de como o Apóstolo Paulo fala sobre como quando julgamos, condenamos a nós mesmos. “Portanto, és indesculpável, ó homem, quando julgas, quem quer que sejas; porque, no que julgas a outro, a ti mesmo te condenas; pois praticas as próprias coisas que condenas.” (Rm 2:1).

Claramente, minha intenção não é inverter valores e nos levar a torcer pelos vilões, não. Há muitos filmes que já têm deturpado a dinâmica herói-vilão e nos feito torcer para que bancos sejam, sucessivamente, assaltados e que o psicopata injustiçado socialmente, tadinho, coloque Gotham em fogo etc. Dentro da narrativa em que estão inseridos, a única via de justiça para esses vilões se dá pelas mãos do herói que os derrota. Os filmes — ainda que referentes e indissociáveis da realidade onde não há “nenhum justo sequer” (Rm 3) — não são exatamente iguais a essa realidade e, portanto, não representam a dinâmica Criação-Queda-Redenção de modo totalmente igual. Neles pode haver, assim, um justo que não Cristo e um juiz que não Deus. Permita-me a licença poética de dizer que há, nesses retratos cinematográficos do estado natural do homem e sua necessidade de salvação, uma licença poética. O que quero, porém, é que pensemos no modo como estar ao lado do herói, que é essa única via de justiça desse mundo a que estamos assistindo, toca em algo que permeia todos os nossos corações: somos culpados e necessitamos de redenção. Às vezes, assistir ao sacrifício altruísta do gênio, bilionário, playboy e filantropo Tony Stark em Vingadores: Ultimato nos dá a esperança de que, talvez, haja bondade em nós. Não há. Tony é fictício e, na vida real, se não tivesse confessado fé salvadora em Cristo, iria ao inferno, porque mesmo que tenha derrotado Thanos, era um pecador.

Minha intenção, também, não é ser legalista e dizer que consumir filmes, jogos e livros que retratam a violência é, necessariamente, pecado. Nem torcer para o Coringa ou achar o Darth Vader legal na estampa da sua camiseta é, necessariamente, algo pecaminoso. No entanto, há, sim, a possibilidade de fazer essas coisas com disposição reprovável em nossos corações. John Piper diria que até beber água, dependendo dessa disposição, pode ser pecado. É algo a se pensar.

Mas o ponto aqui, amigos, é o fato de que não há coração disposto demais ao pecado que, arrependido, não possa ser perdoado por Cristo. Também não há aliens, robôs, mafiosos, criminosos, desastres, guerras e carros velozes comparáveis ao sacrifício remidor de nosso Senhor. Ele era carpinteiro, trabalhava com madeira, não tinha uma armadura robótica; não desafiou um imperador romano, como Máximo, mas sob um prefeito, governador local, foi condenado à mais humilhante morte daquele tempo. Ele não tinha carros velozes, voadores ou que viajassem no tempo, nem mesmo uma moto ele tinha. Sua entrada triunfal foi em um jumentinho. Em sua aventura, ele não foi acompanhado por heróis com escudos de metais inquebráveis, nem semideuses, mas eram doze homens comuns que o acompanhavam, dentre os quais estavam pescadores, um cobrador de impostos, um zelote e um traidor. No entanto, a confiança deles em seu mestre foi tanta que, ainda hoje, há quem se entregue aos leões, fuzis e lâminas por amor ao carpinteiro. Filmes de ação e aventura, com seus robôs e carros velozes, nos salvam da monotonia e banalidade da vida comum por algumas horas, e isso é bom. Cristo nos salva do juízo vindouro de Deus por toda a eternidade, e isso é maravilhoso. Por causa de Cristo, “Doce é a luz, e agradável aos olhos, ver o sol” (Ec 11:7). Alegremo-nos.

[1] Texto-base para o encontro que ocorreu no dia 06 de maio de 2021. Para saber mais sobre os encontros, acesse: https://www.instagram.com/gecosmovisao/

Pietro Menezes é membro da Igreja Presbiteriana Metropolitana de São Paulo, graduando em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde liderou a Aliança Bíblica Universitária e o Grupo de Estudos de Cosmovisão. Veterano de guerra contra a procrastinação, apaixonado por rock, música brasileira e arte, chora assistindo A Vingança dos Sith.

GE Cosmovisão Cristã

Grupo de Estudos de Cosmovisão Reformada da Universidade Presbiteriana Mackenzie.