GE Cosmovisão Cristã
12 min readMar 15, 2021

CONTANDO HISTÓRIAS[1]

Acredito que todo mundo já ouviu pelo menos uma vez na vida que as coisas devem ter começo, meio e fim. Aqui em casa, por exemplo, contar piadas pode ser bem difícil, porque é comum que ao invés de rir da sua piada alguém te pergunte o que aconteceu depois, ignorando completamente o humor em si. Alguns finais, de fato, nos deixam muito curiosos — “quem matou aquele Odete Roitman?”, “quem vai levar o brasileirão esse ano?” ou “será que a quarentena vai acabar?” –, outros, porém, preferimos não saber ou até mesmo fingir que nunca vão chegar. Quem é que quer saber como vai morrer?

Como já vimos, nós somos contadores de histórias e essas histórias, quer pensemos nisso ou não, acabam seguindo uma estrutura. Michael Scott — o melhor chefe do mundo — já disse, e eu me identifico, que às vezes começa a falar sem saber exatamente onde quer chegar. Tem horas em que isso realmente acontece até que um silêncio constrangedor aparece ou finalmente encontramos a ponta do durex e conseguimos dar algum sentido a tudo aquilo. Mas geralmente não é assim. Via de regra, contamos uma história sabendo onde queremos chegar e o caminho que vamos percorrer — começo, meio e fim. Existem até mesmo aquelas histórias que contamos tantas vezes que já refinamos a técnica e sabemos exatamente as palavras que devemos utilizar para produzir o efeito que desejamos. No cinema não é diferente.

Convenhamos que “começo, meio e fim” é genérico demais. O filme inevitavelmente começa e termina, qualquer coisa nesse intervalo é o meio, mas não significa que há uma estrutura inteligível na história. Imagine algo assim: o filme começa mostrando a vida marinha durante cinco minutos e abruptamente começa a seguir um homem correndo pela rua por meia hora até que outro corte brusco apresente um chimpanzé tocando guitarra, os créditos sobem e o filme acaba. É um filme? Dá pra dizer que sim. É uma história? Definitivamente não (embora algum jovem pós-moderno consiga desconstruir algum simbolismo inventado e encontrar uma crítica social nisso). Justamente por isso, várias tentativas foram realizadas de sistematizar uma estrutura narrativa para os filmes, algumas delas já consagradas, como os três atos de Syd Field.[2]

Nessa estrutura, a história é dividida em três atos, de forma relativamente semelhante a “começo, meio e fim”. O primeiro ato é de apresentação e ocupa cerca de ¼ da duração do filme, com o objetivo de definir a ideia inicial e apresentar as personagens para o espectador. O segundo ato, por sua vez, é o de maior duração, ocupando cerca de metade da trama. É no segundo ato que a história se desenvolve até chegar em seu clímax e, a partir daí, começar a se dirigir para o terceiro ato: a resolução. Semelhante ao primeiro ato, o terceiro ocupa o ¼ restante do tempo e deve amarrar as pontas e oferecer uma solução para a história. Ainda que seja um modelo clássico e, de certa forma, inescapável, é comum que se aponte sua falta de especificidades, isto porque Field não oferece um “passo-a-passo” do que deve ser feito dentro desses atos, deixando o roteirista apenas com indicações com “gancho I”, “ponto de virada” e “ponto central”.

Por outro lado, Blake Snyder[3] apresenta uma versão muito mais detalhada da estrutura de Field: a Beat Sheet. Como o próprio Snyder escreveu: o paradigma de Syd Field deixa o roteirista como um nadador em um vasto oceano, com muito espaço para nadar entre os atos, deixando-o muitas vezes perdido. Sua proposta, portanto, é de fornecer pequenas ilhas para as quais o escritor pode nadar a fim de se direcionar para o seu destino. Sendo assim, Snyder define 15 “beats”, ou seja, 15 pontos da narrativa que compõe a história, indicando não apenas quais são e no que consistem, mas até mesmo em que página do roteiro devem aparecer. Se Field pode ser acusado de ser muito genérico, Snyder pode ser condenado sem dificuldade por ser muito específico. Como este não é um manual de roteiro ou um texto sobre screenwriting em si, não me alongarei em descrever quais são os beats e suas respectivas funções dentro do roteiro, mas é interessante conhecer, sobretudo pela abrangência em que foi utilizado.

Pode ser que você nunca tenha ouvido falar de Field ou Snyder, nem de seus paradigmas de roteiro, da mesma forma que pode nunca ter cruzado com o nome de Joseph Campbell, todavia, acredito ser muito provável que você já tenha se deparado com a obra deste: A Jornada do Herói. Esta jornada é descrita por Campbell em seu Magnum Opus “O Herói de Mil Faces”, mas é encontrada facilmente e com os mais diversos desenhos de apoio em qualquer canto da internet. Sua estrutura é circular e dividida em 12 passos. O formato circular é preferido em relação ao linear por demonstrar graficamente o processo de “descida” do herói à provação e sua “subida” de retorno transformado. Não é sem razão que a aproximação do abismo, um dos passos da jornada, ocupa a posição mais inferior da circunferência. De certa maneira, ainda, podemos categorizar esses 12 passos dentro da estrutura de 3 atos, como é possível ver na imagem:

Talvez esta seja a estrutura mais popular entre escritores e entusiastas. Há filmes em que é possível identificar claramente a utilização desse paradigma, chamado também de “monomito”, como em Star Wars, O Senhor dos Anéis e Harry Potter. De certa maneira, a popularidade e a ampla aplicação (por vezes irrefletida) do paradigma de Campbell têm a ver com a razão de ser do nome “monomito”. Partindo de pressupostos psicanalíticos, o autor, influenciado por Sigmund Freud e Carl Jung, retrata o paradigma como resultado de um inconsciente coletivo, “pois os símbolos da mitologia não são manufaturados; eles não podem ser ordenados, inventados ou permanentemente suprimidos. Eles são produções espontâneas da psiquê e cada um carrega consigo, intocado, o poder germinal de sua origem.”[4] O autor prossegue dizendo que, das muitas ciências que buscam explicar o surgimento e o desenvolvimento dos mitos, “Freud, Jung e seus seguidores demonstraram irrefutavelmente que a lógica, os heróis e as obras do mito sobrevivem nos tempos modernos.”[5] Não à toa, o autor dedica a primeira parte de seu livro a explicar como as teorias da psicanálise — ou “as revelações que emergiram da clínica mental”[6] — explicam a origem e a manutenção do monomito, tendo como base a interpretação dos sonhos e outros conhecidos conceitos da psicanálise como a pulsão de morte e a pulsão sexual.

Como cristãos, é inadmissível que aceitemos essas teses como a explicação fiel por trás do fato de existir uma estrutura comum nas histórias contadas por todas as civilizações. Como vimos anteriormente, histórias são importantes, elas moldam nossa visão de mundo e são o meio pelo qual a expressamos. Mais do que isso, o próprio Deus se comunica através de histórias e estabelece sacramentos que carregam consigo a maior das histórias, como vemos na instituição da Páscoa, em Êxodo 12:26–27: “Quando vossos filhos vos perguntarem: Que rito é este? Respondereis: É o sacrifício da Páscoa ao Senhor, que passou por cima das casas dos filhos de Israel no Egito, quando feriu os egípcios e livrou as nossas casas. Então o povo se inclinou e adorou”, bem como na instituição de sua celebração na Nova Aliança: a Ceia do Senhor, como vemos em Lucas 22:19, 20: “E, tomando um pão, tendo dado graças, o partiu e lhes deu, dizendo: Isto é o meu corpo oferecido por vós, fazei isto em memória de mim. Semelhantemente, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este é o cálice da nova aliança no meu sangue derramado em favor de vós.”

Devemos reconhecer que a contação de histórias, portanto, é parte da atividade humana de subcriação. Nas palavras do Rev. Emilio Garofalo Neto, “Deus é o único criador completamente original. Ele fez o cosmos ex nihilo, desde o nada. Ele não foi constrangido por nada; criou livre e completamente da forma que desejou. O ser humano, imagem e semelhança de Deus, foi feito receptivamente criativo. Isso implica que somos criadores, construindo sobre a criação de Deus. Nós construímos de maneira derivada.”[7] Sendo assim, somos levados a compreender que mesmo a mais original de nossas histórias não pode ser escrita a partir do absoluto nada, pois somos limitados àquilo que o próprio Deus estabeleceu em sua criação e podemos trabalhar somente a partir deste material. É justamente nesse sentido que J. R. R. Tolkien, escritor de O Senhor dos Anéis e outras grandes histórias, emprega o termo subcriação. Ainda segundo o Rev. Emilio: “Nós criamos dentro dos limites do que existe ou do que poderia existir dentro dos limites criacionais, construindo, reimaginando e desenvolvendo. Criaturas operam com recursos limitados (embora muito vastos) e capacidade mental limitada dentro da estrutura do mundo criado em sua existência atual ou potencial.”[8]

Há, portanto, uma metanarrativa, uma “história das histórias” sobre a qual todas as outras são construídas, desde as mais abrangentes até as mais específicas. De fato, é isso o que permite que existam, por exemplo, relatos pagãos tão próximos — e às vezes nem tanto — daqueles que conhecemos nas Sagradas Escrituras e demonstra que, ao contrário das acusações feitas ao cristianismo de ser uma cópia destes mitos, eles são, na verdade, corrupções da narrativa original. Conforme escreveu C. S. Lewis: “Não devemos ter vergonha do brilho mítico que irradia de nossa teologia. Não devemos ficar nervosos com ‘paralelos’ e ‘cristos pagãos’: eles devem existir — seria um entrave se não existissem. Não devemos, em falsa espiritualidade, refrear nossa aceitação imaginativa. Se Deus escolhe ser mitopeico — e não é o céu em si um mito? — devemos ser mitopáticos — afetados pelo mito? Afinal, este é o casamento do céu e da Terra: o Mito Perfeito e o Fato Perfeito”.[9]

Como já foi citado: somos receptivamente criativos, ou melhor, “O homem é um ser religioso: criativamente receptivo e ativamente redentivo”[10], como ensina o Rev. Wadislau Martins Gomes. Expandindo o conceito: “Somos criados receptivamente criativos (habitação) e ativamente redentivos (imaginação). A Escritura revela que nós experimentamos o mundo a partir das afeições do coração — fé,esperança e amor — e que essas afeições se expressam por meio da habitação no conhecimento, da imaginação desse mesmo conhecimento e da operação do conhecimento. Assim, a fé, que inclui crenças e valores, e a esperança, que inclui os modos formais para a solução de problemas, propõem-nos uma base paradigmática motivacional para os atos humanos.”[11] Temos que lembrar, todavia, que não estamos mais em estado de integridade, pois a corrupção herdada de Adão continua a afetar as afeições de nosso coração e, consequentemente, nosso ser como um todo.

Ainda que o homem seja o mesmo desde sua criação, ele se encontra sob os efeitos do pecado original. Em seu estado atual, o ser humano está em deflagrada rebelião contra Deus, com seus pensamentos revertidos em relação a Ele e invertido em relação ao Seu propósito. Sendo Deus a habitação do homem, tudo quanto ele faz é feito em relação ao Criador, seja a favor ou contra, e isso, é claro, influencia diretamente a maneira que o homem não-regenerado conta histórias, refletindo completamente o que escreveu o apóstolo Paulo: “porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis” (Romanos 1:21–23). Nas tramas corrompidas, o homem é destituído da imagem divina à qual foi criado, a queda deixa de ser um episódio histórico e espaço-temporal de proporções cósmicas e a redenção é encontrada em qualquer outro lugar que não seja Deus.

Diferente de Thanos, Deus é verdadeiramente inevitável — “Senhor, tu me sondas e me conheces. Sabes quando me assento e quando me levanto; de longe penetras os meus pensamentos. Esquadrinhas o meu andar e o meu deitar e conheces todos os meus caminhos. Ainda a palavra me não chegou à língua, e tu, Senhor, já a conheces toda. Tu me cercas por trás e por diante e sobre mim pões a mão.” (Salmos 139:1–5) — e colocou a eternidade no coração do homem (cf. Eclesiastes 3:11). Dessa maneira, o Senhor permite, em sua graça comum, que os ímpios não apenas produzam coisas boas, mas também que nós cristãos encontremos pontos de contato nessas obras.

É para isso que as estruturas e os paradigmas narrativos se tornam tão importantes. Uma vez sabendo que não são frutos de devaneios psicanalíticos, mas sinais da imagem de Deus em nós, podemos utilizá-los como meio de compreender como nossas histórias se encaixam na grande história escrita pelo próprio Senhor. Para tanto, utilizaremos aqui o que pode ser chamada de uma “versão simplificada” da Jornada do Herói de Campbell: a Story Circle (Círulo da História) de Dan Harmon, roteirista e showrunner de Rick and Morty.

Diferente do monomito, a estrutura circular de Harmon consiste em oito passos, a saber: (i) A personagem está em uma zona de conforto: este é o momento em que o protagonista é apresentado ao público e o tom da história é definido; (ii) mas ela quer algo: algo está fora do normal, um problema aparece e deve ser resolvido; (iii) ela entra em uma situação não familiar: o protagonista se encontra no centro do problema e embarca na jornada que conduz a trama; (iv) se adapta a ela: o protagonista vive o conflito em si, Harmon compara este passo com o “ventre da baleia” de Campbell; (v) consegue o que queria: o protagonista encontra a solução para o conflito em que foi inserido; (vi) paga um alto preço por isso: creio ser autoexplicativo; (vii) retorna à situação familiar: o protagonista retorna à zona de conforto, estando finalmente livre do conflito; (viii) tendo mudado: todavia, o protagonista está diferente do início da jornada, pois foi transformado por esta. Sem maiores explicações, Harmon é direto: “Pense em quantos dos seus filmes favoritos você puder e veja se eles se encaixam nesse padrão. Agora pense em suas piadas em festas, seus sonhos mais vívidos, contos de fadas e escute uma música popular (a música, não necessariamente a letra). Se acostume com a ideia de que histórias seguem um padrão de queda e retorno, mergulhar e emergir. Desmistifique. Veja em todo lugar. Perceba que isso está programado em seu sistema nervoso e acredite que, em um vácuo, criado por lobos, suas histórias ainda seguiriam este padrão.”[12]

Os passos da estrutura são simples e seus nomes são autoexplicativos, o que faz Harmon ir ainda além e simplificar esses nomes, transformando-os em: (i) você; (ii) precisa; (iii) vai; (iv) procura; (v) encontra; (vi) pega; (vii) retorna; (viii) muda[13]. Vejamos, portanto, como histórias conhecidas nossas se encaixam nesse padrão:

Pode ser que você tenha percebido que essa estrutura se assemelha muito a de uma história em específico: a história de (i) uma humanidade criada boa e em perfeita comunhão com Deus no jardim, (ii) mas é tentada por Satanás a desobedecer a ordem divina de não comer do fruto proibido e (iii) sucumbe à tentação, pecando e recebendo sobre si a culpa e a corrupção do pecado. Por conta disso, (iv) toda a humanidade passa a sofrer as consequências terríveis do pecado enquanto o Senhor escolhe para si um povo e progressivamente revela o que há de acontecer na plenitude dos tempos, (v) quando Jesus Cristo, seu Filho unigênito, abre mão de sua glória e assume forma humana para habitar entre nós e, em perfeita obediência, (vi) morrer na cruz, levando sobre si a justa punição de Deus sobre o pecado dos eleitos, que agora aguardam, enquanto são santificados, pelo dia em que hão de (vii) retornar ao estado de bondade e plena comunhão com Deus, (viii) não mais em corpos corruptíveis, mas glorificados, gozando de uma comunhão imperdível com o Criador na nova terra que Ele nos prometeu. Essa, afinal, é a grande história em que estamos todos inseridos e que estrutura todas as outras histórias.

[1] Texto-base para o encontro que ocorreu no dia 11 de março de 2021. Para saber mais sobre os encontros, acesse: https://www.instagram.com/gecosmovisao/

[2] Syd Field, Manual de Roteiro.

[3] Blake Snyder, Save The Cat.

[4] Joseph Campbell, O Herói de Mil Faces, p. 4.

[5] Ibid.

[6] Ibid.

[7] Emilio Garofalo Neto, Ficção é bom pra pastor.

[8] Ibid.

[9] C. S. Lewis, Deus no banco dos réus.

[10] Wadislau Martins Gomes, Aconselhamento Redentivo.

[11] Ibid.

[12] Dan Harmon, Story Circle 101.

[13] Dan Harmon, Story Circle 103.

Carlos Roberto Parra é membro da Igreja Presbiteriana Metropolitana de São Paulo, graduando em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde também é pesquisador, e é estudante de teologia no Seminário Martin Bucer. É também fã de comédias românticas, entusiasta de música e inconformado torcedor são-paulino.

GE Cosmovisão Cristã

Grupo de Estudos de Cosmovisão Reformada da Universidade Presbiteriana Mackenzie.