GE Cosmovisão Cristã
12 min readApr 6, 2021

COMEÇANDO DO COMEÇO[1]

Há algum tempo, meu pastor expôs o livro de Daniel para a nossa congregação. Sim, o livro todo. Sim, até a parte das profecias. Profecias são muito interessantes, sobretudo quando em linguagem escatológica, mas podem ser perigosas em certo sentido. Não porque elas sejam perigosas em si, mas porque podemos perder o que é de fato importante se focamos nossa atenção ao que deveria ser secundário. Valendo-me da analogia que o pastor utilizou, nós, muitas vezes, ficamos como uma criança que brinca com a embalagem, com a caixa, com o papel de presente ou qualquer outra coisa, mas nunca com o brinquedo em si. Queremos saber quem é o leão com asas, o Godzilla bíblico, o que são os tempos e metades de tempos, mas esquecemos do propósito para o qual aquelas profecias foram entregues. Com a criação costuma acontecer a mesma coisa.

Imagine que o grupo de jovens da sua igreja resolve promover um encontro para falar sobre a criação. Qual a probabilidade de toda a discussão girar em volta de perguntas como “os seis dias são literais?”, “o ‘haja luz’ foi o big bang?”, “será que Deus não guiou a evolução?” e outras semelhantes? Grande, não? Mas é curioso que a própria Bíblia não se preocupa em satisfazer a nossa curiosidade a respeito disso, nem mesmo sobre como provar a existência de Deus. Logo de cara somos apresentados a um fato: “No princípio criou Deus os céus e a terra.” Tudo que há foi criado por Deus e o próprio Deus por ninguém foi criado. Esquecemos que há muito mais na doutrina da criação do que simples argumentos para debater com ateus, esquecemos que os primeiros capítulos de Gênesis são instruções claras de como devemos viver no mundo de maneira a agradar a Deus.

Estrutura e Direção

O Rev. Heber Campos Jr define Estrutura e Direção nos seguintes termos: “Estrutura diz respeito ao potencial cultural ordenado por Deus e às leis que o regem. Direção diz respeito à participação humana no manuseio dessa estrutura.”[2] Isto é, no ato da criação, o Senhor estabeleceu determinadas leis que regem as mais diversas esferas da existência e que, sendo respeitadas, levam a criação a alcançar seu potencial estabelecido também pelo próprio Senhor, o que é compreendido como Estrutura. Um exemplo claro disso é o matrimônio. É incontroverso que Deus criou homem e mulher, nada mais e nada menos, e tudo o que se seguiu foram repetições deste mesmo padrão: homem e mulher. Isto não foi à toa. Ao criar o homem, o Senhor definiu também sua função no mundo: “tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra” (Gênesis 1:26). O relato da criação da mulher também não carece de uma exposição de motivos: “Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea” (Gênesis 2:18). Junto à criação da humanidade, homem e mulher, foi instituído o casamento — “Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se uma só carne” (Gênesis 2:24) — e sua forma correta: heterossexual e monogâmico. Isso não apenas afasta a ideia de que é válida “toda forma de amor”, como temos visto com a ascensão dos movimentos progressistas, mas também a ideia presente até mesmo no seio da igreja de que o sexo ou até mesmo o casamento são coisas ruins, “males necessários” ou coisas assim. O casamento e o sexo — dentro do casamento — são bons e quem diz isso não sou eu, mas o próprio Deus: “Viu Deus tudo quando fizera, e eis que era muito bom” (Gênesis 1:31).

Não apenas o casamento é bom por ser parte da criação, mas também outras atividades como a arte, a ciência, a agricultura e afins, uma vez que todas essas são atividades que se encontram dentro do mandato divino para cultivar e guardar — “Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar” (Gênesis 2:15). Nas palavras de Abraham Kuyper, “este domínio [sobre a natureza] não pode ser adquirido exceto pelo exercício dos poderes que, em virtude das ordenanças da criação, são inatos à própria natureza. Consequentemente, toda ciência é apenas a aplicação ao cosmos dos poderes de investigação e pensamento criados dentro de nós; e a Arte nada mais é do que a produtividade natural dos poderes de nossa imaginação.”[3] Sendo assim, somos levados a reconhecer que há uma estrutura criacional definida por Deus que determina como as coisas devem ser e qual o potencial delas ao serem exploradas pelo homem, mas não é só isso.

Descobrir a potencialidade da criação não é suficiente para agradar a Deus. Devemos lembrar que o fim principal do homem, como bem ensina o Breve Catecismo de Westminster, é “glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”. Sabemos que ímpios podem, dado à graça comum dispensada a toda a humanidade, fazer grandes descobertas científicas, belíssimas obras de arte, ser grandes líderes políticos ou até mesmo vencerem quantos Oscars puderem, mas será que eles agradam ao Senhor ao fazê-lo com uma disposição apóstata do coração? Muito embora o homem possa descobrir a potencialidade da criação em sua Estrutura, ele, por causa da corrupção do pecado, a procura de maneira apóstata, não dando a Deus a glória devida. Heber Jr aponta com propriedade para a linhagem de Caim como um claro exemplo disto: “A linhagem de Caim, espiritualmente oposta à linhagem de Abel/Sete, promoveu um avanço sociocultural impressionante: edificou uma cidade, promoveu pecuária, música e metalurgia (Gn 4.17–22). No entanto, a prova de que tal desenvolvimento benéfico à sociedade não é cumprimento do mandato cultural é que a sociedade resultante não só foi desagradável ao Senhor (Gn 6.5), mas mesmo depois do dilúvio ela continuou a promover progresso de forma apóstata (Gn 11.9).”[4]

Um homem pode ser casado com uma mulher, não a trair ou desrespeitá-la de qualquer maneira, pode ser uma referência positiva em sua área de atuação e ainda ajudar os pobres com liberalidade e ainda assim não agradar a Deus porque seu coração, em última instância, está direcionado de maneira apóstata, em rebelião ao Senhor. Novamente nas palavras de Heber Jr: “amar a sua esposa à parte de Deus é um amor idólatra e não cumpre o mandato social, assim também simplesmente agir na cultura não é cumprir o mandato cultural.”[5] Estes mandatos estão subordinados ao mandato espiritual, portanto é impossível verdadeiramente cumpri-los à parte de Jesus Cristo. Embora a graça comum esteja sobre todos e permita o desenvolvimento da sociedade humana, apenas a graça especial entregue aos eleitos permite ao homem que agrade ao Senhor.

Ecos da Criação

É interessante, todavia, como, mesmo que ninguém pense nisto, estas categorias estão presentes nas narrativas cinematográficas. Primeiro no próprio coração do homem ao produzir um filme. Como já vimos anteriormente, o ser humano é receptivamente criativo[6], isto é, o ser humano é criativo porque herdou do próprio Deus essa capacidade ao ser criado à Sua imagem. É claro, entretanto, que a capacidade criativa do homem é limitada, em contraste à divina, uma vez que trabalha em cima da estrutura e dos materiais que o próprio Senhor determinou. Segundo o Rev. Emilio Garofalo Neto, “O homem só é capaz de criar dentro das fronteiras do que Deus fez e estabeleceu dentro do campo de possibilidades.”[7] Dessa maneira, a produção de filmes é também um exercício da criatividade possuída por meio da Imago Dei. Criamos pequenas “realidades” nos valendo das habilidades concedidas por Deus à humanidade e aprimoradas pelos homens no decorrer da história e isto é bom! Pensando especialmente no cinema, é impressionante pensar no tanto de técnicas que são incorporadas no processo de produção de um filme, desde o roteiro até a edição final, passando por iluminação, fotografia, figurino, atuação e diversas outras coisas que talvez nem passem pela mente de leigos como nós. O homem descobre e aprimora o potencial da criação, desenvolvendo tecnologias maravilhosas que nos entregam as superproduções que assistimos. Assistir obras com efeitos especiais extremamente inovadores e realistas é uma das mais deslumbrantes maneiras de apreciar a criação de Deus em pleno desenvolvimento.

Em um mundo sem pecado, poderíamos dizer que o cinema é perfeitamente bom. Sabemos, porém, que, desde Gênesis 3, isto não é verdade. Isso não significa que não possa haver qualquer coisa boa no cinema. A direção apóstata do coração não regenerado pode — e o faz — reverter e inverter o que era bom por conta da rebelião contra Deus. Entra aqui uma situação delicada. Acredito que você conheça igrejas — ou ao menos tenha ouvido falar delas — que proíbem completamente seus membros de ir ao cinema. Eu mesmo já presenciei uma pessoa dizer, em uma discussão sobre isso, que “Deus não entra no cinema”. Seria, por acaso, o cinema um ambiente tão pecaminoso que refreia a onipresença de Deus? De maneira alguma! Do contrário, a única alternativa seria o total isolamento do resto do mundo e uma vida semelhante à dos Amish, contrariando totalmente nossa vocação para sermos sal da terra e luz do mundo. Há, entretanto, uma questão de prudência e ponderação a respeito da qualidade do que se assiste, onde creio que vale a advertência de Paulo aos filipenses: “Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso pensamento” (Filipenses 2:8). Além disso, devemos lembrar que importa que nós, cristãos regenerados pelo Santo Espírito de Deus, tenhamos o esmero de produzir filmes bons, pois apenas nós temos a verdadeira capacidade de, a partir da estrutura criada, subcriar em uma direção correta, isto é, para a glória de Deus.

Não é, todavia, apenas na disposição humana em produzir um filme que se encontram os ecos da criação, mas nas próprias obras resultantes deste trabalho. Pense nas estruturas narrativas que vimos anteriormente. O primeiro passo, seja qual for o paradigma, é o estabelecimento de um mundo comum, um conjunto de leis que regem o universo para o qual estamos sendo apresentados. Existe um conceito bastante aplicado no cinema chamado “suspensão de descrença”.[8] Seu significado é tão simples quanto seu nome: suspender voluntariamente sua descrença a respeito de algo. É isto que permite com que assistamos a um filme como Star Wars sem ficar por duas horas pensando “isso não faz sentido nenhum”. “Entramos” no filme sabendo que o que aconteceu “há muito tempo em uma galáxia muito, muito distante” não corresponde com o que acontece corriqueiramente na nossa própria galáxia. Mesmo filmes que se passam no planeta terra fazem uso da suspensão de descrença para dar maior verossimilhança a suas histórias.

Para tanto, é necessário justamente que o autor estabeleça Estrutura e Direção próprias que regerão o mundo em que o filme se passa. Mesmo se for a Terra. Aí é que está o xis da questão! Ao estabelecer Estrutura e Direção próprias na realidade que criou, o autor — consciente ou inconscientemente — apresenta uma visão a respeito de quem é o homem, qual o seu propósito, quem é Deus (se é que existe) e outras perguntas fundamentais para a existência. Avatar, de James Cameron, é um dos exemplos mais claros do que se pretende demonstrar. As criaturas azuis viviam em uma espécie de paraíso isolado e protegido de todo perigo até que o homem invade este local sagrado e o profana. Uma estrutura semelhante pode ser encontrada em Pantera Negra, de Ryan Coolgler, em que Wakanda encontrava-se escondida do restante da humanidade enquanto se desenvolvia tecnologicamente a níveis impensados por qualquer um do “mundo exterior” até o momento em que o segredo é revelado. Muitos filmes partem deste mesmo princípio: um mundo harmônico, basicamente perfeito, que é corrompido por um “pecado original” do qual decorre todo o problema que a trama busca resolver. Para Mike Cosper, “Essas histórias são como ecos e memórias do Éden, onde um intruso destrói algo puro e intocado. Somos deixados lamentando uma perda que não entendemos completamente. É difícil articular isso, algo que sentimos em nossos ossos e conhecemos de modo mais preciso quando o sofrimento vem. Somos como exilados de segunda geração, que nunca conheceram o mundo que perderam, mas ainda anseiam por ele.”[9]

Nem todos, porém, gostam de acreditar na ideia de que existia um mundo bom que foi corrompido. Para outros, é mais aceitável a visão de que tudo sempre foi assim, que estamos perdidos neste mundo e cabe a nós, no máximo, usar nossa liberdade para encontrar algum significado. Um exemplo prolífico dessa visão existencialista é o cineasta sueco Ingmar Bergman. Francis Schaeffer diz que Bergman “talvez tenha sido quem deu a expressão mais clara ao desespero contemporâneo… Seus filmes existencialistas vão até Tystnadem (O Silêncio), mas não o incluem. Este filme é uma declaração de mensagens do completo niilismo.”[10] Outro filme, porém, que retrata bem a “normalização” da corrupção humana é Monika e o Desejo. Neste filme, Monika e Harry se apaixonam em um bar e resolvem fugir para uma ilha deserta, onde passam o verão. Nesta ilha, o paraíso particular do casal, eles fogem de suas realidades pobres e barulhentas para um oásis de amor e liberdade — ao menos em suas visões. Mas isso não dura para sempre, uma hora eles devem voltar para a cidade. Monika engravida e o cotidiano conjugal é um fardo para ambos. A vida “livre” na ilha é contrastada com a “prisão” da vida comum. Para resumir, o filme termina com Monika de volta ao bar em que conheceu Harry pronta para dar o bote em outro homem. A vida é assim aos olhos de Bergman, livre da moralidade “retrógrada”, livre dos limites impostos pela sociedade, mas, no fim, presa à falta de sentido. Nenhum paraíso dura para sempre, uma hora nossas asas de cera derretem com a proximidade do sol e caímos mortos no chão.

Se, porém, sabemos que é na ordem criacional que nós encontramos a Estrutura definida por Deus para o desenvolvimento da vida na Terra, devemos estar sempre cientes de que é na “ordem criacional” das narrativas cinematográficas que podemos compreender a visão do autor sobre como deveria ser a Estrutura que guiaria o desenvolvimento da vida — seja para defender a validade dessa Estrutura ou apresentá-la como inviável. Reconhecer este fato, todavia, não implica em uma necessidade de abandono do cinema ou de um consumo exclusivo de “filmes cristãos”, mas simplesmente em uma atenção crítica a esses detalhes, o que pode se tornar uma ferramenta muito útil não apenas para quem pretende produzir um filme, mas também para que nós possamos compreender a visão de mundo dominante em nosso contexto.

Encontrando pontos de contato

Mike Cosper escreve que “Quando o sofrimento vem, seja de origem terrorista, desastre ou de batalhas que se levantam contra nós, um poderoso sentimento se manifesta, dizendo-nos que isso não é o modo como o mundo foi criado para ser. Queremos que o sofrimento acabe, mas também sabemos que ele nem deveria estar aqui, para começo de conversa.” Por mais que o homem tente, ele não pode fugir do fato de que Deus “pôs a eternidade no coração do homem, sem que este possa descobrir as obras que Deus fez desde o princípio até ao fim” (Eclesiastes 3:11). Não apenas buscamos por redenção, mas também temos saudade do paraíso que perdemos e a manifestamos constantemente, ainda que em uma direção completamente apóstata, como aqueles que “detêm a verdade pela injustiça” (Romanos 1:18). Segundo Francis Schaeffer, “Ninguém que entenda de Michelangelo ou Leonardo da Vinci pode olhar para suas obras de arte sem compreender algo de suas respectivas cosmovisões. Estes artistas começaram fazendo obras de arte e, então, suas cosmovisões transparecem no conjunto de suas obras.”[11] Não é necessário, todavia, que o artista seja um gênio como os exemplos citados para que sua cosmovisão transpareça em suas obras. Pelo contrário, basta que seja humano.

Ao adentrarmos a sala do cinema com essas considerações em mente, podemos compreender o que o autor compreende como a natureza fundamental do homem, seu propósito e seu estado atual e indagar: por que meus contemporâneos, meus amigos ou até mesmo meus familiares se identificam com essa cosmovisão? Qual é o fundamento de seus pressupostos? São Bíblicos? Detêm alguma verdade? E através da obtenção dessas respostas podemos entender como pensa o nosso próximo e, a partir disso, encontrar pontos de contato através dos quais é possível engajar a comunicação do evangelho. É claro, entretanto, que isso não significa que compraremos os pressupostos da pessoa com quem estamos conversando e iremos evangelizá-la nestes termos, antes, é necessário que identifiquemos estes pressupostos justamente para que, valendo-me da terminologia de Schaeffer, possamos “tirar o telhado” dela, mostrando a ela mesma quais são os seus pressupostos e a levando a reconhecer as consequências inevitáveis deles, que sempre serão trágicas se não baseadas na Palavra de Deus.

[1] Texto-base para o encontro que ocorreu no dia 25 de março de 2021. Para saber mais sobre os encontros, acesse: https://www.instagram.com/gecosmovisao/

[2] Heber Campos Jr. Amando a Deus no Mundo: Por uma Cosmovisão Reformada.

[3] Abraham Kuyper. Calvinismo.

[4] Heber Campos Jr. Amando a Deus no Mundo: Por uma Cosmovisão Reformada.

[5] Ibid.

[6] Wadislau Martins Gomes. Aconselhamento Redentivo.

[7] Emilio Garofalo Neto. A busca por diversão.

[8] Cunhado pela primeira vez por Samuel Taylor Coleridge em 1817.

[9] Mike Cosper. As Histórias Que Contamos.

[10] Francis A. Schaeffer. O Deus que Intervém.

[11] Francis A. Schaeffer. A Arte e a Bíblia.

Carlos Roberto Parra é membro da Igreja Presbiteriana Metropolitana de São Paulo, graduando em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde também é pesquisador, e é estudante de teologia no Seminário Martin Bucer. É também fã de comédias românticas, entusiasta de música e inconformado torcedor são-paulino.

GE Cosmovisão Cristã

Grupo de Estudos de Cosmovisão Reformada da Universidade Presbiteriana Mackenzie.