GE Cosmovisão Cristã
16 min readMar 22, 2021

A HISTÓRIA QUE DEUS CONTOU[1]

Viagem no tempo é uma das minhas temáticas favoritas quando o assunto é cinema ou mesmo séries. Durante meus anos de ensino fundamental, era quase litúrgica a rotina de ligar a televisão na TV Cultura às oito horas da noite para assistir Doctor Who. Até hoje é uma das minhas fantasias favoritas para ir em festas (afinal, é só pegar a chave-de-fenda sônica e me vestir de social com gravata borboleta). Outras produções que envolvem viagens no tempo se tornaram grandes clássicos do cinema, como De Volta Para o Futuro e, mais recentemente, Vingadores: Ultimato. Lembro-me, inclusive, que, na semana de lançamento de Ultimato, cheguei no escritório em que trabalhava e vi que a lousa da minha sala estava cheia de desenhos e linhas do tempo. Foi aí que fiquei sabendo que, antes de os estagiários chegarem, os sócios estavam discutindo se a teoria de viagem no tempo apresentada no filme da Marvel fazia sentido.

Meu filme favorito, porém, não é de viagem no tempo, mas também tem uma linha temporal bastante confusa. Enquanto escrevia o primeiro parágrafo, me veio a ideia de definir este filme dizendo que “não é de viagem no tempo, mas viaja no tempo”, talvez seja isso mesmo. O filme em questão é (500) Dias Com Ela, que também não é uma comédia romântica, mas tem comédia e fala de romance. Olha só que beleza! Caso você não conheça o filme, é importante saber que ele não conta a história linearmente, mas apresenta os 500 dias em que a trama ocorre de maneira alternada, marcada por transições que mostram qual é o dia em questão. A ideia, a meu ver, é mostrar os claros contrastes entre os momentos que o casal viveu desde um início alegre e animado até um término confuso e deprimido. Aliás, este é um daqueles filmes que começam pelo final.

Tudo bem, acredito que você tenha entendido que alguns filmes têm linhas do tempo diferentes, inovadoras e até mesmo questionáveis, mas o que isso tem a ver com a história que Deus contou? Tudo. Até aqui, falamos sobre como as histórias do cinema moldam nossa visão de mundo e nosso viver nele, bem como sobre a estrutura que está por trás dos roteiros e por que ela é importante, isso tudo pra dizer que a história que Deus contou (e segue contando) também possui uma estrutura e é esta estrutura que define todas as outras. Se um filme sobre viagem no tempo falha em explicar quais os termos em que a viagem ocorre — se é possível alterar o futuro ou se o futuro é fixo e dependente, justamente, desta viagem; como os paradoxos são solucionados, se é que são; se a viagem no tempo cria uma outra linha temporal ou apenas altera a mesma, entre outras questões — ou se um filme que não narra linearmente a trama falha em deixar claro em que momento da história cada ato apresentado está acontecendo, é impossível entender o filme e nada resta ao espectador senão ficar perdido ou inventar teorias mirabolantes.

Nós estamos inseridos em uma grande história: a história que Deus contou. Essa história é contada desde a eternidade, quando, em sua infinita sabedoria, o Senhor decretou o rumo de toda a história, desde os eventos de maior escala até o movimentar das menores partículas — conhecidas ou desconhecidas — que compõem a matéria. Essa é a grande história em que estamos inseridos e que já recebeu diversos nomes: “O Plano da Salvação”, “O Plano da Redenção”, “Historia Salutis” e mais. Seja como for que você a chame ou a conheça, a verdade é que ela possui uma estrutura muito bem definida, como podemos identificar, por exemplo, na pregação do apóstolo Paulo aos atenienses no areópago:

“porque, passando e observando os objetos de vosso culto, encontrei também um altar no qual está inscrito: Ao Deus Desconhecido. Pois esse que adorais sem conhecer é precisamente aquele que eu vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em santuários feitos por mãos humanas. Nem é servido por mãos humanas, como se de alguma coisa precisasse; pois ele mesmo é quem a todos dá vida, respiração e tudo mais; de um só fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites da sua habitação; para buscarem a Deus se, porventura, tateando, o possam achar, bem que não está longe de cada um de nós; pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como alguns dos vossos poetas têm dito: Porque dele também somos geração. Sendo, pois, geração de Deus, não devemos pensar que a divindade é semelhante ao ouro, à prata ou à pedra, trabalhados pela arte e imaginação do homem. Ora, não levou Deus em conta os tempos da ignorância; agora, porém, notifica aos homens que todos, em toda parte, se arrependam; porquanto estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio de um varão que destinou e acreditou diante de todos, ressuscitando-o dentre os mortos.” (Atos 17:23–31)

Como o Rev. Heber Campos Jr bem aponta, este discurso de Paulo apresenta claramente os quatro momentos fundamentais da metanarrativa (isto é, a história das histórias) cristã: criação, queda, redenção e consumação.

Após caminhar por Atenas e observar os altares aos deuses pagãos, em especial um dedicado ao “Deus Desconhecido”, o apóstolo se dirige aos epicureus e aos estoicos no Areópago e passa a apresentá-los o evangelho. Uma leitura atenta dessa passagem confirma o ponto do Rev. Heber Jr — estes motivos-base, como também são conhecidos, estão de fato presentes na estrutura do discurso, como será demonstrado.

Criação

O discurso do apóstolo começa apresentando um Deus criador: “Pois esse que adorais sem conhecer é precisamente aquele que eu vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em santuários feitos por mãos humanas. Nem é servido por mãos humanas, como se de alguma coisa precisasse; pois ele mesmo é quem a todos dá vida, respiração e tudo mais; de um só fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites da sua habitação; para buscarem a Deus…” Essas afirmações, muito embora possam passar despercebidas em uma leitura mais “corrida” ou até mesmo por nossa familiaridade do “crentês” com muitas dessas expressões, são de um caráter tal que nos comunicam grandiosas verdades a respeito de quem Deus é e de quem nossos fomos criados para ser.

É comum que a temática “criação” venha à baila apenas quando o assunto é refutar ateus — ou até mesmo o próprio irmão com uma visão diferente — mas é negligenciada como meio de conhecer o Ser de Deus. Como bem aponta o Rev. Heber, há uma espécie de hierarquia inventada nas Escolas Dominicais: para as crianças nós contamos a história da criação, de como Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo, mas para os adultos nós falamos da redenção, do sacrifício vicário de Cristo e outras verdades “superiores”. Nisto, perdemos de vista a big picture, o contexto no qual a redenção se tornou necessária e o destino daqueles que são redimidos por Jesus Cristo.

Paulo não se limitou a falar da redenção para aquelas pessoas. Muito pelo contrário. A primeira coisa que aprendemos do discurso apostólico é que o Deus Desconhecido, o Deus de Israel, fez o mundo e tudo que nele existe e é Senhor do céu e da terra. Imagine o peso dessa afirmação em uma cultura em que os deuses eram senhores cada um de uma porção da existência, um sobre os mares, outro sobre os raios, ainda outro sobre a morte. O Deus Desconhecido, todavia, não apenas havia criado todas essas coisas, mas é também Senhor sobre todas elas. Foi, inclusive, essa noção judaico-cristã do Deus onipotente e Senhor sobre todos os aspectos da criação que possibilitou o surgimento da ciência moderna, uma vez que a natureza não era mais sujeita aos desmandos de deuses falíveis que a usariam como meio para suas batalhas de ego, como vemos nas mitologias pagãs. Este Deus também não habita em santuários feitos por mãos de homens ou é servido por estas mesmas mãos. Eu fui à Grécia há alguns anos e vi alguns templos — ou suas ruínas — e é impossível dizer que não são belíssimos, verdadeiras obras de arte, ainda assim, não são capazes de conter o Deus Altíssimo. Nem mesmo Salomão, ao consagrar o Templo cuja construção o próprio Deus ordenara ousou imaginar que Ele estivesse contido por aquelas pedras: “Mas, de fato, habitaria Deus na terra? Eis que os céus e até o céu dos céus não te podem conter, quanto menos esta casa que eu edifiquei” (1 Reis 8:27). Antes, é o próprio Senhor quem dá a vida a todos os homens, havendo os criado com um propósito muito bem definido: “para habitar a terra… para buscarem a Deus”.

A doutrina da criação, portanto, nos ensina muito mais do que argumentos contra materialistas ou lições para a EBD infantil. Essa doutrina nos fala a respeito do Ser de Deus e nossa existência em relação a Ele — “pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos”. Ela nos ensina que fomos criados com um propósito, como o Breve Catecismo de Westminster registra: glorificar a Deus e gozá-lo para sempre. Antes do pecado adentrar o mundo, antes que a poeira de morte tomasse conta de nossa existência, antes de nossos primeiros pais serem expulsos do paraíso, havia uma vida de plena comunhão com Deus, uma vida sem influência do pecado e com ordens claras de cultivar e guardar que poderiam ser cumpridas com muito menos sofrimento que hoje. Havia uma direção determinada pelo próprio Deus antes mesmo da criação para que o servíssemos da maneira que Ele deseja, não de acordo com nossas próprias inclinações pecaminosas. A criação nos dá as bases da vida cristã no mundo.

Queda

Existe algo errado! Olhamos ao redor e percebemos que nem de longe é possível dizer que estamos em um paraíso, que estamos cultivando e guardando a criação de maneira apropriada, que estamos obedecendo a direção estabelecida pelo Senhor no ato da criação. Paulo, ao caminhar por Atenas, olha ao redor e vê altares e altares aos mais diversos falsos deuses, vê todo tipo de rebelião, reversão e inversão. O que, porém, explicaria toda essa perversão em um mundo que foi criado bom? Todos pecaram e carecem da glória de Deus (Romanos 3:23), de fato, “assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram” (Romanos 5:12). Houve um evento — um evento histórico, no espaço-tempo, com pessoas reais e consequências reais — que lançou a humanidade em uma nuvem de poeira de morte, um evento em que a humanidade, representada por Adão, levantou seu punho cerrado em direção a Deus, como uma criança que mostra a língua para seu pai, declarando rebelião, cosendo para si mesmos roupas de folhagens. “Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao marido, e ele comeu” (Gênesis 3:6). Deu ruim!

Talvez você já tenha visto uma bússola quebrada. Espero que nunca em um momento em que precisava dela. Fato é que a bússola quebrada sabe que precisa apontar para algum lugar, afinal é para isso que ela foi criada, mas ela está quebrada, ela não sabe para onde apontar, então fica girando descontroladamente para lá e para cá, tentando encontrar um norte (literalmente). Este é o homem. Mesmo em deflagrada rebelião contra Deus, não é capaz de escapar de sua natureza religiosa, como João Calvino escreveu em suas Institutas: “Sabemos, sem nenhuma dúvida, que no espírito humano há, por inclinação natural, certo senso da divindade… o Senhor nos dotou de certa percepção de sua majestade” (Institutas I, 1, 4). Dessa maneira, o ser humano busca ocupar o altar de seu coração com qualquer outra coisa que não seja Deus, afinal, como disse G. K. Chesterton, “Quando se deixa de acreditar em Deus, passa-se a acreditar em qualquer coisa.” Isso ecoa as palavras do apóstolo Paulo em sua carta aos Romanos, quando escreveu que “porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis” (Romanos 1:21–23).

Essa é a mesma mensagem que Paulo entrega aos atenienses ao dizer que “não devemos pensar que a divindade é semelhante ao ouro, à prata ou à pedra, trabalhados pela arte e imaginação do homem.” Neste momento, Paulo expõe a rebelião dos gregos ao, mesmo sendo criados à Imagem de Deus e carregando em seus corações esse senso de divindade, adorarem suas próprias criações, feitas, estas, à imagem e semelhança dos próprios homens e esculpidas em ouro, prata e pedra. É justamente por conta dessa rebelião que todos se encontram sob o juízo de Deus. O efeito dessa inversão, que faz que o homem adore a criação e não o Criador, não é mera culpa psicológica ou qualquer outro tipo de sentimento ruim, mas uma culpa moral diante do Deus Altíssimo, uma culpa cuja sentença não é outra senão a morte. Este é o estado do homem não regenerado e este é o estado de nossa cultura hoje. Suas costas estão viradas para Deus e suas faces voltadas para o próprio umbigo. Houve uma queda — uma queda histórica, espaço-temporal, com pessoas reais e consequências reais — que deixou o mundo quebrado, contrário a Deus e envolto por poeira de morte.

Redenção

“Ora, não levou Deus em conta os tempos da ignorância; agora, porém, notifica aos homens que todos, em toda parte, se arrependam”. Existe esperança apesar da queda, da rebelião e do estado deplorável em que a humanidade se encontra desde os eventos relatados em Gênesis 3. Deus notifica aos homens de toda parte que se arrependam. Há uma maneira de escapar da justa condenação que espera os pecadores e essa maneira é a fé no sacrifício do varão a quem Deus acreditou diante de todos, ressuscitando-o dentre os mortos. É pela fé no sacrifício de Cristo que o homem pode ser salvo, mas esta fé é dependente do conhecimento dos momentos anteriores, isto é, de saber que houve um momento em que toda a criação era boa (Gênesis 1:31) e o homem tinha plena comunhão com Deus, mas essa comunhão foi perdida no momento em que a humanidade, representada por Adão (Romanos 5:12), pecou e ficou sob a justa condenação de Deus. Justamente por isso, tornou-se necessário um redentor que fosse verdadeiro homem e verdadeiro Deus que tomasse sobre si as nossas penas e imputasse a nós a sua justiça. É claro que ninguém é obrigado a conhecer o arco redentivo nestes termos, afinal não somos gnósticos, mas, se a fé vem pelo ouvir a palavra de Deus, este é o conteúdo da palavra que Ele nos deixou.

Após as más notícias, então, Paulo traz as boas novas aos atenienses: Deus, em sua infinita misericórdia, não os fulminou por seus pecados durante o tempo que eram ignorantes em relação ao evangelho, mas naquele momento lhes concedia a oportunidade de se arrependerem de seus pecados e receberem o perdão através da obra de Jesus Cristo. A estrutura é semelhante à da pregação de Pedro no dia de Pentecostes: “Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus, que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo. Ouvindo eles estas coisas, compungiu-se-lhes o coração e perguntaram a Pedro e aos demais apóstolos: Que faremos, irmãos? Respondeu-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo” (Atos 2:36–38). Convencidos de seu estado de pecaminosidade e rebelião contra Deus, o homem então se aproxima com suas mãos, vazias e sujas, estendidas para receber o presente da graça de Deus.

Jesus, Deus Filho, se fez carne e habitou entre nós, foi fiel até a morte de cruz, levando sobre si todas as nossas transgressões, a fim de, lavados por seu sangue, sermos perdoados de nossos pecados. Deus não deixa o pecado impune e, justamente por isso, puniu o pecado dos eleitos em Cristo. Sobre Ele estavam todas as nossas transgressões e, hoje, unidos a Ele na morte e na ressurreição, somos capacitados para viver uma nova vida. A despeito de qualquer explicação apóstata que se queira dar para o mal do homem, seja a explicação psicológica, a biológica, a sociológica ou qualquer outra, sabemos, com base no fiel testemunho da palavra de Deus, que todos os problemas da humanidade têm sua origem no pecado e podem ser solucionados unicamente pela obra redentora de Jesus Cristo.

Consumação

Paulo finaliza seu discurso (ou tem seu discurso interrompido) falando a respeito do julgamento que aguarda a todos: “porquanto estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio de um varão que destinou e acreditou diante de todos, ressuscitando-o dentre os mortos.” O Credo Apostólico, confissão fundamental da cristandade, é preciso em afirmar “E [creio] em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor… subiu aos céus e está assentado à direita de Deus Pai Todo-Poderoso, de onde há de vir e julgar vivos e mortos.” Seremos todos julgados, estejamos nós vivos ou mortos no derradeiro dia do Senhor, resta-nos saber se seremos julgados por nossa própria — e inexistente — justiça ou se teremos sobre nós imputada a justiça de Cristo. E isso muda tudo.

Haverá um dia em que Jesus há de retornar com grande poder, trazendo para si o seu povo e punindo seus inimigos com castigo eterno. Nesse dia, seremos finalmente livres não apenas do poder do pecado, vencido na justificação, ou da influência do pecado, vencida na santificação, mas seremos completamente livres da própria presença do pecado. Veremos face-a-face o nosso Redentor, como de maneira sublime Jó exclamou: “Porque eu sei que o meu Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra. Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus. Vê-lo-ei por mim mesmo, os meus olhos o verão, e não outros; de saudade me desfalece o coração dentro de mim” (Jó 19:25–27). Em carne veremos a Cristo e com ele reinaremos para sempre. Este é o verdadeiro final feliz, o verdadeiro “felizes para sempre”, pois estaremos em um lugar em que “Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles. E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram” (Apocalipse 21:3,4).

Consumada a obra redentora, viveremos na nova terra, sob novos céus, gozando de uma comunhão imperdível, como define o Rev. Heber Campos (dessa vez o pai). Viveremos, enfim, aquilo que o primeiro casal perdeu ao pecar. Dessa vez, porém, de volta ao jardim, temos a certeza de que não haverá mais pecado e poderemos glorificar a Deus e gozá-lo para sempre. Para sempre mesmo!

A metanarrativa

Esta é a grande história em que estamos inseridos, esta é a história que Deus contou desde a eternidade em seu Decreto e que segue contando em sua Palavra e na história. Esta é a história da redenção do cosmos, da humanidade, do povo de Deus, de cada um de nós, filhos da aliança. Esta é a história gravada em nosso coração e da qual não podemos escapar. É por isso, na verdade, que existem tantas histórias semelhantes em estrutura à narrativa bíblica. Não porque a Bíblia é mais uma produção literária que se amolda aos paradigmas já estabelecidos, ou porque seja uma cópia de mitos de povos pagãos, muito menos porque algum inconsciente coletivo jungiano levou os escritores a escreverem a Bíblia desse jeito.

Como já vimos anteriormente, com base nos escritos do Rev. Wadislau, somos ativamente redentivos. Estamos constantemente tentando nos redimir e redimir aos outros, mas, por conta da rebelião, da reversão e da inversão, frutos do pecado, buscamos fontes apóstatas de redenção. Não é Cristo que se conforma à jornada do herói, mas é a humanidade perdida que busca criar seus próprios cristos, que detém a verdade de Deus por injustiça e, completando o ultraje, a inclui no rol da ficção. Nós, porém, temos a mente de Cristo e sabemos que esses ecos, momentos de verdade mesmo nas obras mais apóstatas, são os ecos da Imago Dei. Cada falso cristo proposto nas telas prateadas de Hollywood não é senão o lamento daquele que vagueia perdido em busca de redenção, como Agostinho autobiograficamente escreveu: “Perguntei-o à terra e disse-me: “Eu não sou”. E tudo o que nela existe respondeu-me o mesmo. Interroguei o mar, os abismos e os répteis animados e vivos e responderam-me: “Não somos o teu Deus; busca-o acima de nós”. Perguntei aos ventos que sopram; e o ar, com os seus habitantes, respondeu-me: “Anaxímenes está enganado; eu não sou o teu Deus”. Interroguei o céu, o Sol, a Lua, as estrelas e disseram-me: “Nós também não somos o Deus que procuras”. Disse a todos os seres que me rodeiam as portas da carne: “Já que não sois o meu Deus, falai-me do meu Deus, dizei-me, ao menos, alguma coisa d’Ele”. E exclamaram com alarido: “Foi Ele quem nos criou”.”

Importa, portanto, conhecer a estrutura da história em que estamos inseridos a fim de que possamos compreender o mundo em que vivemos — e que habita em Deus, pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos. Filmes de viagem no tempo não fazem sentido se não conhecemos a estrutura que sustenta as linhas do tempo e as viagens. Filmes que começam pelo final ou vão e voltam durante a trama não fazem sentido se não soubermos qual o fio narrativo que guia o que estamos assistindo. Da mesma maneira, nada debaixo do sol faz sentido, como já nos ensinou Salomão, se não tivermos em vista a história que o próprio Deus determinou em seu tempo. Ele mesmo demonstrou estar consciente dessa estrutura quando concluiu que “De tudo o que se tem ouvido, a suma é: “Teme a Deus e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo homem. Porque Deus há de trazer a juízo todas as obras, até as que estão escondidas, quer sejam boas, quer sejam más” (Eclesiastes 12:13,14). Daqui em diante, portanto, veremos como os momentos da metanarrativa cristã encontram eco nas histórias cinematográficas e como podemos fazer uma leitura da nossa cultura através disto.

[1] Texto-base para o encontro que ocorreu no dia 18 de março de 2021. Para saber mais sobre os encontros, acesse nosso canal do YouTube nossa página do Instagram.

Carlos Roberto Parra é membro da Igreja Presbiteriana Metropolitana de São Paulo, graduando em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde também é pesquisador, e é estudante de teologia no Seminário Martin Bucer. É também fã de comédias românticas, entusiasta de música e inconformado torcedor são-paulino.

GE Cosmovisão Cristã

Grupo de Estudos de Cosmovisão Reformada da Universidade Presbiteriana Mackenzie.